Sunday, July 23, 2006

FILHO, UM DIA NADA DISSO SERÁ SEU

O retrato de Paolo era de 1885. O pintor assinava como “Vincenzo Ponti”, e havia sido pintado ainda na Itália, poucos anos antes do velho Paolo imigrar para o Brasil. Sentado numa confortável poltrona, tinha atrás de si uma lareira. Parecia estar trajando algo parecido com um fraque, de tom azulado escuro. Sua expressão não era nem alegre nem triste, nem confiante nem descrente. Apenas olhava placidamente para o pintor, esse tal Vincenzo Ponti que a história não legou à posteridade e de quem só se conhecia a assinatura. Nenhum verbete na Wikipedia ou ocorrência no Google.

A pintura veio para o Brasil junto com as duas malinhas surradas de Paolo e família, e anos depois passou a ornamentar a parede da casa de Luigi, o primogênito.
Correram as décadas, vieram as traças e os cupins na moldura. Melhor chamar um fotógrafo para tirar um retrato do retrato, a imagem de papai não pode se perder – pensou Luigi. Ainda bem que o retrato não se mexia, porque a exposição à câmera era demorada. Se fosse uma pessoa, teria que ficar imóvel por pelo menos 10 minutos. A fotografia retratando a pintura ficava numa mesinha de canto, próxima ao hall de entrada.

Trinta anos mais tarde, Felipe, que havia herdado a casa de Luigi, sacou sua Rolleiflex e prosseguiu com a brincadeira: tirou uma foto da foto da pintura junto à pintura real - a essa altura com a tela em frangalhos, as cores desbotadas e outra moldura no lugar da original.

1967. Com uma filmadora Super-8 na mão, Joaquim preparava a luz para fazer a tomada antes da demolição da casa. Filmou, num único e demorado plano, a foto que seu pai, Felipe, havia tirado da foto que Luigi mandara fazer do retrato de Paolo.

Chegou a vez do Rodrigo, filho do Joaquim, prosseguir com a tradição. Passou para uma fita de vídeo a filmagem em Super-8 feita pelo pai. Agora era um vídeo contendo o filme que mostrava a foto onde figurava outra foto que captou a pintura do falecidíssimo Paolo. Cinco gerações, cinco planos de registros sendo perpetuados.

Mas fita de vídeo oxida, estraga com o rebobinamento, perde qualidade a cada reprodução. Já o DVD, não. Dados digitais são eternos, como eternas tinham que ser as relíquias da família. Hora de passar a fita para a nova mídia.

Deu na televisão e nos suplementos de informática: o DVD, supostamente imune à ação do tempo, mostra sua fragilidade. Muitos estão se apagando, sem causa aparente. Rodrigo decide fazer cópias do DVD familiar para deixar ao pequeno Paolo, assim batizado em homenagem ao patriarca.

Fez 10 cópias. Para maior segurança, cada uma delas de um fabricante diferente. Três vão ficar com o jovem Paolo, que só irá reproduzi-las em ocasiões especiais para evitar manuseios constantes. Seis serão distribuídas para parentes que residam distantes uns dos outros (incêndios, inundações, terremotos ou assaltos podem acontecer, mas não simultaneamente em seis lugares diferentes, a menos que seja o fim do mundo). A última das dez cópias será acondicionada em uma caixa de isopor, sobre a qual haverá um revestimento de cortiça. Acima deste será providenciada uma camada de chumbo, que então será guarnecida por uma forração de madeira maciça fechada por cinco cadeados. A caixa multi-camadas será depositada, junto com as chaves dos cadeados, no cofre de um banco.

Tudo pronto. Dever cumprido, consciência tranqüila, perpetuação assegurada. Mas o sossego durou pouco: agora apareceu o Blu-Ray, nova mídia que irá aposentar definitivamente o DVD comum. E com um nível de confiabilidade de armazenamento nunca antes imaginado pelo homem. Muito menos pelo velho Paolo.

SEM COMENTÁRIOS

Li recentemente que 75.000 novos blogs são criados ao dia. O que significa dizer que, se até hoje você não tem um, amanhã provavelmente terá. Nem que seja só um álbum de fotos do batizado do seu pimpolho.

Mas se sobram blogs, faltam comentários. Pelo menos no meu. Após meses de postagens, o saldo de mensagens no meu sitiozinho virtual era desolador: um da minha irmã, um da minha sobrinha (ambos altamente suspeitos), um de colega de trabalho e um do meu querido Clóvis Vieira, jornalista de “O Município”.

Quando estes poucos comentários chegaram, deu aquele frio na barriga. Quem terá enviado? Será que é elogio ou alguém descendo o sarrafo?
Se fosse alguma coisa muito desabonadora, eu ia querer tirar. Mas aí seria censura. Estaria omitindo as talvez merecidas descomposturas para deixar só os afagos. Já pensou, atacar de editor de comentários? Seria muita trapaça.

Melhor então deixar sem a opção de comentar. E foi o que fiz. Entrei nas configurações do bichinho e desabilitei os palpites. Ótimo. Agora a porcaria do blog virou depósito de textos. Um contra-senso, já que a graça do blog é justamente a interatividade com o visitante. Mas fazer o quê, ninguém queria interagir comigo. O que era pra ser diálogo virou monólogo e estamos conversados. Quer dizer, não estamos.
Quem quer deixar um comentário deve achar antipática essa não-abertura à avaliação alheia. Mas tenho cá minhas razões, e a principal delas é que estava pegando mal. Onde é que já se viu um blog tão sem comentários assim?

Coisa mais frustrante ver aquele “0 comments” embaixo de dezenas de textos, cada um deles clamando por um comentarista de plantão!!!

Opinião mesmo, só de boca. Amigos e parentes dizendo que tinham acessado o blog e achado muito bonitinho, uma graça. Todos com a mesma história: “Olha, não deu tempo de ler tudo, mas os dois ou três textos que li já valeram a visita. Parabéns, continue firme”. Mas comentário por escrito, nada. Pô, uma linhazinha já estava bom. Um “oi”, um “passei por aqui e prometo voltar”, um “valeu” básico. A impressão que dava é que faltava disposição pra deixar lá o que quer que fosse. Outra explicação possível é que os comentários, uma vez postados, tornam-se públicos, tanto quanto o texto comentado. Muita gente pode acessar e ler, e o nosso comentarista de repente não quer deixar rastros...

Melhor sorte têm os ilustres, as celebridades que estão na blogosfera. O figurão postou o texto e meia hora depois já está até o pescoço de comentários, do Brasil inteiro. É que aí a coisa é diferente. Ter a oportunidade de deixar seu recado no blog de um famoso é status, quem ler pode achar que o palpiteiro é íntimo do autor. Na remota hipótese da mensagem ser uma raspança, o fã-clube do distinto instantaneamente se encarregará de lavrar um comentário-réplica, dando um “cala-boca” no desaforado.

Isto posto (ou seria postado?), vamos combinar o seguinte: fique à vontade pra percorrer as mal-traçadas do meu blog. Mas para louvações ou porradas, mande um e-mail. Prometo responder a todos. msguassabia@yahoo.com.br

Sunday, July 09, 2006

A RÚCULA E SUAS DESCONHECIDAS PROPRIEDADES

Parcela do IPVA, água, luz, telefone, escola.
Podia muito bem pagar por internet, caixa eletrônico, débito automático. Mas não confiava em nada disso, gostava mesmo da autenticação mecânica. Ali, preto no branco. Vai que amanhã dá pau geral no sistema, como provar que tá pago?

Pra falar a verdade, nem queria que a fila andasse. Tinha hora no dentista daí a 40 minutos. E sair de um suplício para outro era demais. Um sacrifício pede recompensa, e não mais sacrifício. Boca aberta ao torturante motorzinho, boquiaberto com o buraco no orçamento. Não, não. Ligaria pro consultório, desmarcando.

O saco sem fundo de trabalhar pra ganhar, ganhar pra pagar as contas, pagar as contas pra continuar na estatística dos economicamente ativos. E assim sucessivamente – do mesmo jeito será com seu filho e destino igual terá seu neto, se até lá esse mundinho não explodir numa hecatombe.

Ontem tinha ido almoçar com a Débora. Como sabia esnobá-lo, a cachorra. Ô Débora desalmada. Deixa estar que ainda me vingo, ele pensou. E a vingança veio a cavalo, naquele safado PF de padaria. Arroz, feijão, batata souté, salada de tomate e... rúcula.

Sentados à mesa, ela aciona o seu mais radiante sorriso em direção ao carinha da mesa ao lado. Foi quando se deu o desastre: aquele tiquinho de rúcula entre os alvíssimos incisivos. Quanto mais metida e insinuante a darling se mostrava, mais a verdura tornava bizarra aquela diva de subúrbio. Era nojento, constrangedor, hilariante. E a Deborazinha se achando.
Ele regozijava-se intimamente com aqueles míseros milímetros quadrados de rúcula, cujo poder de destruição ecoava por toda a Panificadora Doce Mel.

Contou: 28 à sua frente, sendo 7 office-boys. Aquelas caras de segunda-feira, mesmo sendo uma quinta que anuncia a sexta que traria o redentor fim de semana.

Se estudasse direitinho não estaria ali e não seria o que era. Esse ser de cera, dez horas por dia com o traseiro soldado a uma poltrona de escritório sem apoio para os braços. Essa previdente figura que não sai de casa sem guarda-chuva e talões de zona azul.

A cordinha de nylon a balizar a fila. Em todas as filas, de todos os bancos, a mesma cordinha e o mesmo dim-dom anunciando o caixa livre. Um passo à frente.

Olhou para o cartaz, na parede próxima ao subgerente. Um casal, dois filhos e um cão de guarda simpático, todos transbordando de felicidade graças ao seguro de vida que, além de cobrir morte, invalidez permanente e renda cessante, ainda oferece sorteios mensais de casas, carros e notebooks com processador Pentium 4 e monitor de cristal líquido.

De novo a imagem da Débora, com sua carruagem transformada em abóbora ao meio-dia. Foi-se o encanto, seu sapatinho de cristal virou pantufa de palhaço. A Débora a quem a rúcula tornou ridícula.

Dim-dom. Chegou sua vez.
Olha no crachá da moça: outra Débora. Ela diz “pois não” sorrindo. E sem rúcula nos dentes.

Sunday, July 02, 2006

O DEDÉ

Foi revendo “Forrest Gump” que lembrei do Dedé, o sumido porém inesquecível Dedé. Estava ao seu lado no cinema, na época do lançamento do filme, quando num rompante inspiradíssimo ele lavrou a versão tupiniquim da filosofia do anti-herói americano: “A vida é como uma empadinha de rodoviária: a gente nunca sabe o que vai encontrar”.

Nada do que o Dedé dissesse era levado a sério. Por mais sérios que fossem seus enunciados e máximas.
Consta que foi por volta de 1978 que o Dedé cismou que o tempo estava passando mais rápido. Alardeava aos quatro ventos a singular constatação, dispunha-se a chamar a comunidade científica pra comprovar por A+B a sua tese. Tinha toda uma teoria, amparada por equações complicadíssimas, cálculos quânticos e dízimas periódicas. Porém, mais rápido ou não, o tempo passou e a coisa ficou por isso mesmo.

Uma figura, o Dedé. Pelo seu jeitão aloprado, muitos o chamavam de Lelé. Que maldade.
Líder nato, amava palavras de ordem e gritos de guerra. Adivinha, no colégio, quem era o presidente do grêmio, o chefe da fanfarra, o representante de classe, o orador da turma? Lógico, o Dedé. Na faculdade, estampava e vendia nos intervalos das aulas camisetas do Che, da plantinha de Cannabis e contra o imperialismo ianque.

Se havia alguém perito em arrumar uma confusão, esse alguém era o Dedé. Sem querer, espalhava boatos e insultos difamantes, semeando a discórdia por onde passasse. Aprontava todas e, quando o tempo fechava, escafedia-se em meio à turba se estapeando. O Dedé sumia com a leveza e a rapidez de um ninja. Aquele monte de amigos batendo e apanhando por causa dele, e ele lá, rindo e guardando distância segura do qüiproquó.

O Dedé era também um diletante gastronômico, e suas panelas assistiam às combinações mais esdrúxulas – macarrão doce, sorvete de queijo com cobertura de azeite de oliva e polvilhado com orégano, pato ao molho de fanta uva.

São muitas as recordações. Devia ter umas duas semanas de casado, praticamente ainda em lua de mel, e quem me aparece em casa, de mala e cuia? Adivinhou de novo, leitor: o Dedé. Disse que ia ficar só uns dias. E uns dias, para o Dedé, eram muitos. Mais exatamente, 94.
Assaltava a geladeira sem cerimônia nenhuma, esparramava-se no sofá da sala para ver televisão e urinava com a porta do banheiro aberta.

O ecletismo era sua marca registrada no âmbito profissional. Chegou a gerenciar simultaneamente um bingo para a terceira idade, um serviço de telemensagem e um quiosque de tapioca.

Há cerca de dois anos, aconteceu aquela que seria a grande guinada de sua vida. Com a pompa que a circunstância exigia, abriu as portas do “Hair Fashion by Dedé”. Portas que foram fechadas antes mesmo da tesoura de cabeleireiro cortar a fita inaugural, por não ter sido expedido o alvará da prefeitura. Nunca testemunhei tão retumbante fracasso. Mais de 150 convivas, entre autoridades, convidados e representantes da imprensa local, degustando sidra vagabunda e assistindo o fiscal lacrar o natimorto salão de beleza.

O sucesso do Dedé com as mulheres era inversamente proporcional à sua desenvoltura como empreendedor. Tinha todas as que punha em sua alça de mira. Incluindo a filha de um promotor de justiça, com a qual chegou a noivar e a quem dedicou uma canção de relativo sucesso na época, finalista de um festival em Santa Rita do Passa Quatro e terceiro lugar num outro em Ijuí.
Não obstante essas heróicas conquistas, o pai da moça se opunha ao relacionamento, subestimando seus feitos e julgando-o indigno da filha.
Afrontado e ávido por um revide, Dedé foi à luta e um mês mais tarde esfregou na cara do promotor uma medalhinha de menção honrosa no 12º PIC - Piraporinha in Concert, e o cheque de R$ 75,00 a que fez jus.

Convertido a uma seita pentecostal, passou a levar uma vida regrada e produzia, em sociedade com um cunhado, pesos de porta com grandes figuras bíblicas, como Maomé, Isaac e Matuzalém. Mas foi à bancarrota ao ter um contêiner de Isaacs devolvidos. O comprador alegou que os Isaaquinhos rechados de areia trajavam suspensórios, artefatos que ainda não estavam em voga naqueles idos distantes.

Assim era o Dedé. Esse ser que não existe.