Sunday, May 21, 2006

RÁDIO MIOLO

Independentemente do que você esteja pensando agora, por trás desse pensamento tem uma musiquinha, não tem? De pano de fundo, como quem não quer nada. Às vezes uma, depois outra. Tem dias em que rola uma faixa só, teimosamente. Você até quer passar pra outra, mas o cérebro não deixa. O programador da Sinapse FM resolveu que aquele é o dia daquela música, e não há jabá que o faça mudar de idéia.

Ocorre também da música não ter nada a ver com você, muito menos com seu estado de espírito naquela hora. Mas gruda como chiclete nos neurônios. É quando você se pega cantarolando o prefixo do Programa da Xuxa, sem saber por que cargas d’água, no meio de uma reunião da firma.

Meu DJ mental é um cara eclético, mas acima de tudo beatlemaníaco. Assumido e incorrigível. Colocar Beatles no aparelho de som pra mim é redundância - as mais de duzentas músicas deles eu assovio o tempo todo. É o que se pode chamar de original soundtrack biológico, você escuta uma vez e a coisa passa a fazer parte do seu DNA. Tocou na entrada do meu casamento e quero que toque no meu enterro, mesmo não estando mais lá pra escutar.

Acontece algo que me deixa feliz e a Rádio Miolo ataca de “I want to hold your hand”. Se falta coragem não falta “Hey Jude”, a fabulosa injeção de ânimo que o velho Macca fez para o filho do John. Um momento de reflexão e tiro da cachola “Julia”, “Because”, “Across the Universe”. Se quero meditar, a lavra do George Harrison é um mantra só, do começo ao fim. Pronto pra levar à Índia numa sentada, de preferência em posição de lótus.

Porém nem tudo é Beatles, embora quase tudo seja. E de repente se abre o inesgotável baú dos mineiros. Só de Beto Guedes tem pelo menos umas 20 músicas no hit parade pessoal: “Tesouro da Juventude”, “Noite sem Luar”, “Sol de Primavera”, “Maria Solidária”, não há o que ainda possa ser dito dessas coisas, são os profetas do Aleijadinho em forma musical. Valem todo o ouro das Gerais.

Chico é a próxima parada do dial. “Meus Caros Amigos”, com “O que será” e “Mulheres de Atenas”, ou aquele outro disco com um Buarque pra lá do terceiro uísque, fotografado à frente de uma samambaia, que tem “Cálice” e “Trocando em miúdos”. Em outra estação, mas na mesma freqüência, Caetano e o eterno espanto de “Bicho”, “Jóia”, “Muito”, de um “Cinema Transcendental” que transcende “Qualquer Coisa”. Trilhas de uma época em que não se falava de música de trabalho, exposição à mídia, shows privê no Golden Room do Copa, interesses multinacionais.

Vamos aos clássicos. A Quarta balada de Chopin, alguns trechos de Tristão e Isolda, os Brandenburgos de Bach, o concerto para piano de Rachmaninov. Tudo isso em deliciosa ciranda no toca-discos interno. Vira e mexe esses monumentos reaparecem, virando e mexendo com a gente, tocando sem que seja preciso levantar da cadeira, caçar o disco na estante e ligar o player.

O que acaba acontecendo é que eu coloco pra tocar só os mais novos. O tido e havido como “diferente”, que vai surgindo. E ouço a fim, muito a fim de ser pego de surpresa, arrebatado com algo demolidor. É pena, mas essa primeira audição quase sempre acaba sendo a última.

Então volto ao meu flash-back. Som na caixa craniana, graves e agudos equalizados. No repertório, só as dez mais de todos os tempos. Sem correr o risco de incomodar o vizinho e economizando energia elétrica.

Saturday, May 20, 2006

O CESSAR DAS SESSÕES

Fiz análise durante um certo tempo, por motivo que não vem ao caso expor aqui. Esse certo tempo na verdade não chegou a 3 meses, o suficiente para que eu me desse alta – embora estivesse pior que no início das sessões. Bem pior, descrente da panacéia freudiana e de mim mesmo, me achando um caso perdido.

Era uma sessão semanal, às sextas e após o trabalho. Rua tranqüila, lugar gostoso, consultório aconchegante. A iluminação indireta, só um abajur com uma lâmpada fraquinha. Sentia-me confortável com o chenile do divã e com a perspectiva de 50 longos minutos para um trato nos miolos. O único problema era justamente esse – os tais 50 minutos cravados eram longos demais. O que para os outros pacientes passava voando, para mim parecia todo o período paleozóico.

O analista seguia a linha ortodoxa, freudiano até a medula. E como todo discípulo empedernido do velho Sigmund, se agarrava aos sonhos, lapsos e associações livres pra ir formando o quebra-cabeças. Nesse caso, o monta-cabeças... Tudo poderia e deveria ser usado como fio de meada para os labirintos insondáveis do inconsciente.

Mas o fato é que o homem não abria a boca. Se havia uma análise em curso naquelas quatro paredes só ele sabia, porque absolutamente não compartilhava com a outra parte interessada. Com receio de perguntar, eu também ficava quieto.

Tenho relativa facilidade de não pensar em nada, quando me é possível desfrutar dessa benção. Tanto que no começo achava bom ficar ali, como um acéfalo, os olhos pregados no teto. Só que tudo tem limite. O tempo passando, o taxímetro correndo e eu olhando aqueles certificados todos na parede. As letras góticas com o nome do doutor. A diferença de desenho do D de um diploma para o D de outro. Um em tinta dourada, outro em nanquim, o de graduação de 1972, o de especialização de 1977, o de mestrado de 1979...

Tomei a iniciativa:
- O senhor não vai dizer nada?
- Quem tem de falar é você.
- Mas vou falar o quê?
- A idéia é dizer o que primeiro vier à mente.

Dizer que eu estava pensando na letra gótica do diploma era demais. Ou de menos. Nem a mais fútil das dondocas poderia se entreter com tamanha banalidade. Mas era a verdade, caramba. Eu pagando uma senhora grana para ficar viajando nas firulas e arabescos de um diploma.

Fechava os olhos e nada. Do nada branco passava para um nada negro e sem saída. E o analista impassível, virado de costas pra mim, cruzando e descruzando as pernas. Aquele silêncio era uma goteira dentro da solitária, uma furadeira de impacto me perfurando os tímpanos.

Outro pensamento recorrente, mas inconfessável naquelas circunstâncias: o que ele, analista, estaria pensando? Conjectura sobre o meu silêncio? Fica ali, caraminholando, empenhado em me livrar de minhas neuroses, ou não vê a hora de dar o tempo regulamentar pra pegar seu cineminha?

Me dei conta de que, além de estar pensando no que estava pensando, estava começando a pensar no que o analista estava pensando de mim. Racionalizava o processo, filtrava, censurava, estragava tudo.

E assim foi, não sei quantas vezes. Os brancos eram cada vez maiores. Vinte, trinta, quarenta minutos sem falar nada. O último deve ter durado uns quarenta e sete, porque logo depois ele me mandou embora.

Se bem me lembro, os três minutos finais foram mais ou menos assim:
- Fala alguma coisa, doutor. Não agüento mais esse silêncio.
Pela enésima vez, ele argumentou:
- A idéia é dizer o que primeiro vier à mente.
- Estava pensando na música que tocava no rádio enquanto vinha pra cá.
- E você gosta dessa música?
- Detesto.
- Certo. Que mais?
- Sei lá... o que me ocorre agora é que vou ter que comer um hambúrguer pra matar a fome quando sair daqui.
- Hum. Sei, sei.

E sentenciou, depois de longa pausa:
- Talvez o que você encontre aqui não lhe soe bem aos ouvidos, nem lhe caia bem no estômago.

Acertou na mosca. Pra mim bastava, meus fantasmas não eram tão assustadores assim. Encontraria formas mais econômicas de praticar meditação.

- Seus 50 minutos acabaram. Até sexta que vem.
- Até, doutor.

Tá lá me esperando, desde 1992.

Monday, May 01, 2006

TESTAMENTO DE HYPÓLITO RUFINO PEIXOTO

Eu, Hypólito Rufino Peixoto, no gozo de meus direitos e de minhas plenas faculdades mentais, com o intuito de coibir litígios e desavenças acerca do meu espólio, venho de livre e espontânea vontade, por meio deste instrumento, deixar disposta a partilha a meu gosto, conforme abaixo descrito.

À Justina, companheira abnegada e fiel em minha longa enfermidade, deixo uma imensa gratidão, todo o meu afeto, o São Francisco de gesso que fica no corredor, o monóculo com a Nossa Senhora Aparecida, a certidão de casamento e o retrato da lua-de-mel em Poços de Caldas.

Ao meu cunhado Leléu, tido e havido nesta terra como um burro pronto e acabado, deixo minha sela e respectivo arreio, que lhe cairão bem sobre o lombo. À minha irmã Cinira, que gastou a vida a serviço desse viciado em truco, lego rédea e um par de esporas, já que um burro com livre arbítrio é a pior das ameaças à sociedade organizada.

À minha sogra, junto a quem tenho tantas dívidas morais e espirituais, transmito também as dívidas materiais – as já vencidas, as presentes e as que doravante venham a surgir em meu nome, seja como compromissário ou como avalista.

Não abandonarei à própria sorte aqueles que as más línguas chamam de “frutos de união carnal espúria”, ou seja, os bastardinhos que espalhei por essas plagas. Saibam todos que o seu genitor não lhes negará o amparo e o devido quinhão, ainda que hipotecado, na forma de um alqueire e meio de capim-napiê (Pennisetum purpureum), cultivados no sítio.

O celular pré-pago, juntamente com os R$ 4,36 de crédito remanescente, fica para meu capataz Onofre. Uma liberalidade de minha parte para recompensá-lo pelos valorosos préstimos ao longo de 38 anos. Ele que ouviu de mim tantos desaforos, xingamentos intempestivos e acusações levianas, agora merece falar um pouco.

Quanto ao aquário da sala, alvo certo de acirrada disputa, proponho aos herdeiros que amigavelmente se dêem mútua quitação da seguinte forma: Justina fica com os peixes ornamentais, Cinira com a bombinha de ar, Onofre com o filtro, Leléu com o recipiente de vidro e os bastardos com os pedriscos que ficam no fundo.


OUTROS BENS E HAVERES

Suínos e bovinos
Três gomos de lingüiça (de procedência insuspeita e com carimbo do SIF), dois quilos e meio de carne de segunda e mais meia panela de coxão duro duplamente moído, que estão no gavetão de baixo do freezer. Façam disso o melhor e mais rápido proveito que puderem.

Aplicações
Inseticidas, fungicidas e fertilizantes devem continuar sendo aplicados na minha hortinha de almeirão e couve, à proporção de 1:1000. O pulverizador encontra-se na tulha, e não compõe este testamento por estar com a tampa do tanque girando em falso.

Ações
Tanto a ação de despejo, da qual minha família será vítima devido aos aluguéis atrasados, quanto as ações trabalhistas, provavelmente a serem movidas pelo Onofre e seus subordinados, deverão ser administradas pelo meu advogado – que para tanto será regiamente remunerado pela providência divina, em encarnação vindoura.

Grãos estocados em minha propriedade
Uma embalagem de milho para pipoca da marca Yoki, com prazo de validade a esgotar-se em 25 do corrente.
Um tupperware rachado transversalmente, acondicionado em geladeira, contendo feijão preparado na véspera da elaboração deste documento.
Ambos os bens serão partilhados igualmente entre meus herdeiros, legítimos e ilegítimos, em frações ideais de 1/35 (um trinta e cinco avos) para cada um, com escritura definitiva lavrada e registrada em cartório.

Coleções
Todos os meus gibis, do Carlos Zéfiro e do Cebolinha, as Seleções do Reader’s Digest de 1945 a 1961 e os Almanaques do Biotônico Fontoura deverão ser catalogados por bibliotecário habilitado e experiente. Em seguida, esse rico acervo deverá compor a “Fundação Hypólito Rufino Peixoto”, entidade que terá como missão o fomento cultural em nossa região.

Por fim, meu último porém não menos valioso bem: Edileuza, enteada do Zózimo da botica. Teúda e manteúda desde as quartas-de-final da Copa de 70, com casa montada e conta no armazém, não pode ficar à míngua de uma hora para outra. Todos os meus demais pertences, aqui não arrolados, passam com o meu falecimento às suas mãos.

Perdão, Justina, pela fabulosa e imerecida galharia que fiz brotar em sua cabeça, mas não soube refrear os meus instintos frente a tão roliça criatura. Agora está tudo às claras, não há mais nada a esconder. Mas assim como não se chuta cachorro morto, também não se estapeia defunto, Justina. Releve e viva em paz o resto dos seus dias.