Wednesday, December 21, 2005

ANACRÔNICA

Outro dia um colega de trabalho me mostrou um programinha que ele tinha acabado de baixar da internet: um simulador de barulho de máquina de escrever. Acionado o software, bastava ligar as caixinhas de som e, ao digitar no teclado, saíam ruídos que imitavam o tec-tec da dita cuja. Com o requinte de poder escolher entre vários modelos de máquina. Para cada modelo um som diferente, cópia fiel do original. O mais engraçado é que se ia escrevendo e, ao chegar o fim da linha, tinha aquele barulhão do carro da máquina voltando.

Retornei ao meu lugar e à época em que se datilografava ao invés de digitar. Tinha uns 12 ou 13 anos quando meu pai me matriculou num curso de datilografia da Escola Remington, do Seu Mario Sundfeld. Guardo até hoje o certificado de conclusão - passei com 9. Lembro direitinho do primeiro exercício, só com a mão esquerda: asdf asdf asdf – quatro ou cinco linhas da mesma seqüência, para o aluno memorizar a localização das teclas. Para boa conservação do equipamento, era bom passar o limpa-tipos de vez em quando - uma espécie de borrachinha que, pressionada como um chiclete nos tipos da máquina, ia tirando os resíduos de pó e de tinta que se acumulavam nas letras e tornavam os caracteres ilegíveis.

Quando a gente xxxxxxx errava alguma coisa no xxxx que estava escrevendo, ou resolvia substiutir uma xxxxxxxxxx palavra por outra, o texto ficava cheio de xxxxxxxx. Ou então se usava o corretivo, também chamado de branquinho, utilizado por muitos para fins bem menos nobres. Hoje, o processo de gestação do texto não deixa rastro. Os originais já nascem insípidos e imaculados. Tudo se deleta, se remove, se inverte, sem rabisco e rasura. É o fim do lixo cheio de papel amassado.

Uma máquina de escrever era o que se poderia chamar de “bem durável”, com direito a plaquinha de patrimônio. Objeto de ciúme e estimação, inspirava respeito. Era um monolito encravado na mesa do escritório. Muita gente ganhava uma na formatura do ginásio e ficava com ela até se aposentar. A pessoa, porque a máquina, nem pensar. Quanto mais se batucava mais a bichinha ia amaciando o teclado, ficando mais sensível ao toque e aos caprichos do dono. Tinha valor, atravessava gerações, ficava de herança. Já pensou hoje um computador ser arrolado em inventário? Por mais moderno que seja, daqui a uns meses não valerá mais nada – não suportará a versão 11.2 do Word, os novos recursos do Excel e a interface amigável do próximo Windows. Para que os programas continuem rodando satisfatoriamente, será preciso providenciar mais 4 pentes de memória, um processador mais potente, um hd de 100 gigas e 6 entradas USB. Aí o técnico em informática dirá a você que talvez seja melhor e mais em conta trocar de uma vez a CPU ao invés fazer as atualizações.

Em contrapartida, o que a minha boa e velha Hermes portátil me pede? Quando muito uma fitinha nova a cada dois anos. E olha que maus tratos é que não faltaram nesse tempo todo em que está comigo. Quanta migalha de bolacha e cinza de cigarro já deixei cair em cima dela. Poderia entornar uma ceia de Natal inteira sobre a coitada, com leitoa e tudo, que ela continuaria firme. Já o teclado do computador, se pingar uma gotinha de refrigerante, pode esquecer. Curto nos circuitos, falha geral de sistema, adeus aos dados não salvos.

Preço não é desculpa pra que você deixe de satisfazer esse excêntrico sonho de consumo. Por 100, 150 reais dá pra comprar uma maquininha bem razoável nas poucas oficinas de manutenção remanescentes. De quarta ou quinta mão, mas em perfeito estado de funcionamento - revisada e garantida. Mesmo que não seja pra usar, mas pra sentir o gostinho (ou o cheirinho) de ter uma. Sim, porque as máquinas de escrever têm um cheiro peculiar, de metal e óleo lubrificante. Todas cheiram assim. Exceto as que estão no ferro-velho.

NOTA: esta crônica foi gerada em ambiente Windows XP, no editor de texto Word 2003, salva em disco rígido, copiada em CD e finalmente passada a limpo numa Hermes Baby cor de abóbora, fabricada em 1979.

O RETORNO

Eram três e vinte. A consulta estava marcada para as quatro, e acho que pela primeira vez na vida comecei a reparar nos detalhes peculiares de uma sala de espera. Percebi que havia pouquíssimas diferenças entre aquela e todas as outras que já tinha entrado. Só variavam o endereço e a especialidade do médico ou do dentista.

Você chega e, antes de sentar-se, vai direto ao porta-revistas. Que nunca é um porta-revistas. Ou é um tacho de cobre ou uma cestinha de vime. Dentro, algumas "Veja" sem capa, publicações médicas, tablóides de ofertas do supermercado mais próximo e livrinhos de palavras cruzadas já resolvidas. Se for consultório de pediatra, costuma ter gibi também. E, claro, uma revista Nova bem velha. De 98, 99, por aí. Com uma mulher maravilhosa na capa, em superclose, enrugada como um maracujá de gaveta pelo amassado do papel. Iguais as que a gente encontra no cabeleireiro, mas sem as mechas de cabelo anônimo no meio. Fuçando mais um bocadinho você vai encontrar umas duas ou três Caras que já viraram Coroas, esfarelando e mais amareladas que os manuscritos do Mar Morto.

Geralmente, a revista que você pega é um pouco mais interessante que a do sujeito que está ao seu lado. É quando você percebe que são dois lendo a mesma matéria. O cara com o pescoço cada vez mais esticado para o seu colo. E você fica naquela, sem saber se vira ou não a página, se o vizinho já terminou ou não a leitura dele.

Não demora e chega o puxa-prosa. Aquele que diz “como vai?” e, antes que você responda, já vai logo contando como ele vai. Começa falando do tempo e em questão de segundos desembucha a ficha completa: de onde é, onde dói, a filha casada que mora em Mato Grosso, o filho metido com droga, o terreninho que ele comprou em Boiçucanga com a herança deixada por um tio-avô.

Algumas salas de espera têm aquário, com acarás-bandeira, peixes japoneses, paulistinhas e até cascudos. Sem som ambiente, fica só aquele glub-glub da bomba de ar, que é tiro e queda como sonífero. Quando estiver numa dessas, pode reparar: de cada dez, tem uns quatro dormindo. E ferrados no sono, com fio de baba escorrendo e tudo.

Existem tipos invariavelmente encontráveis em toda sala de espera que se preze: a mãe com um pestinha que não pára quieto (o pentelho quase sempre é acompanhante e não o paciente, pois demonstra uma saúde de ferro). O homem que fica olhando para a ponta do sapato, com o pensamento a léguas dali. O propagandista de laboratório, tamborilando com os dedos em sua pasta preta e consultando o relógio a cada dois minutos. Uma perua falando alto ao celular. A patricinha com seu "Diário de Bridget Jones", mascando chiclete e de calça Diesel.

A intimidade que você acaba tendo com a sala de espera é praticamente compulsória, pelo tempo a mais que você tem que ficar esperando. A consulta das 13h30 é, na verdade, às 14h45. O problema é que, se você não chega às 13h30, o paciente das 14h, que só vai ser atendido às 15h15, passa na sua frente. Ou seja, você está condenado a ficar ali contando não sei quantas vezes os ladrilhos do chão.

Uma voz feminina, com inflexão de locutora de aeroporto, me tira do devaneio:
- Sr. Marcelo... Sguas...
E enrosca no Sguassábia. Lógico.
- Primeira porta à direita. É retorno, senhor?
- Não. Mas é como se fosse.
- Ahn??

O DIA D

De deixar de engolir sapos pra dizer cobras e lagartos. De lagartear enquanto todos se danam de trabalhar. De danar-se para o que os outros achem ou possam pensar. De esticar o raciocínio até atingir a ignorância. De ignorar o radar e a multa, quando ela chegar. De chegar em casa e no chuveiro esvair-se ralo abaixo, sem parar. De parar de andar sentido com a vida e buscar um sentido pra ela. De dizer a ela, a ele, a elas e a eles que agora infelizmente não é possível. De possibilitar-se novas possibilidades, e ver que dá pé fazer o que jamais passou pela cabeça. De encabeçar o abaixo-assinado, indignar-se, chamar a imprensa. De imprimir sua marca na mais alta das encostas, onde poucos alcançaram e ninguém possa tirar. De tirar o relógio do pulso e ter pulso para mandar às favas o prazo estourado. De estourar a boca do balão, cair matando e partir pra briga. De brigar com a obrigação e fazer as pazes com a paz. De apaziguar a ansiedade, baixar a guarda e abrir os braços. De abraçar causas perdidas. De perder e dormir sobre os louros da derrota. De derrotar quem resolve o que pode e o que não pode. De poder e arbitrar, ir além da dose habitual, pichar um muro, dormir sem pijama, não trancar as portas nem regar as plantas. De plantar a semente da discórdia, botar a pulga atrás da orelha, acender o pavio, tapar os ouvidos e sair correndo. De correr algum risco, curtir o frio na barriga, ver a morte de perto, desatar os nós e desatar a rir. De soltar a risada reprimida, censurada à mesa, proibida nas igrejas e velórios, condenável na escola, nas audiências públicas e salas de concerto. De consertar o ânimo alquebrado, o tédio que enferruja, o sifão da pia e a dobradiça da janela. De erguer a vidraça e açoitar o mofo de idos tempos. De sentir saudade de sentir saudade. Ou, melhor ainda, de não sentir saudade por não saber do que se trata. De tratar de ser o que sonhava ser quando crescesse. De crescer sem conhecer a dor do fogo, a picada da cobra, os receios, arrependimentos e limitações incapacitantes. De ser capaz de entreter sem ser chato ou cansativo. De cansar do cansaço e demiti-lo, por justa causa e sem aviso prévio. De previamente ir deixando pra depois. De manter adiado até segunda ordem. De ordenar ao sargento pra não bater continência. De tornar continente seu pequeno povoado. De povoar de duendes e fadas madrinhas a fria terra dos gigantes. De agigantar-se e soar como o piano de Horowitz, a guitarra de Hendrix, o trompete de Armstrong num final de tarde. De assistir o entardecer sem pressa do sol se pôr. De pôr os pingos nos is, passar a limpo, tirar a teima e, tudo isso feito, jazer abandonado num sofá Chesterfield. De abandonar o cigarro por enjoar do vício, não porque é preciso. De não precisar mais cortar as unhas, fazer a barba, retornar ao dentista, atualizar o antivírus, pagar as contas e a promessa. De prometer a si mesmo que, daqui pra frente, nunca mais. De nunca mais guardar pra amanhã o último pedaço de chocolate, já que o amanhã pode muito bem cismar de não chegar. De chegar ao cúmulo, despertar a ira e provocar o espanto. De se espantar consigo e com quem quer que seja. De deixar de.

Tuesday, December 20, 2005

ALEATORIAMENTE

Falta de criatividade pode não significar ausência de dom ou talento para a coisa. Pode ser simplesmente desconhecimento de técnica. Às voltas diariamente com o dilema criativo, por questões profissionais, acabei caindo recentemente num site muito interessante sobre estratégias mentais.

Uma das técnicas apresentadas me chamou a atenção: a “random word”, também chamada de estímulo aleatório. Resumindo, a coisa consiste em juntar uma palavra relacionada com o problema a ser solucionado a outra escolhida absolutamente ao acaso. A partir daí, a idéia é anotar as associações produzidas por essa junção, gerando assim soluções e perspectivas novas. É como eles dizem lá no site: “o segredo é não ficar esperando a maçã cair, mas chacoalhar a macieira”.

Resolvi seguir o conselho. E cruzei “inspiração”, que era a minha angústia no momento, com a primeira palavra tirada a esmo do dicionário. Fechei os olhos, abri o Aurélio numa página qualquer, corri o dedo por ela e parei: “brotoeja”. Caramba, brotoeja... Tudo bem que a coisa toda é aleatória, mas não tinha nada melhor pra me aparecer, não?! O acaso poderia ter sido mais camarada.

Tentei de novo. Apareceu a palavra “empada”. Pra achar alguma liga entre empada e inspiração, seria preciso estar mesmo muito inspirado. E se fosse esse o caso, eu não estaria ali, botando em prática a tal da técnica...

Ainda assim fui em frente. Caí no termo “tubo”. Relacionando inspiração a tubo fui parar numa Unidade de Terapia Intensiva, com um paciente inspirando pelo tubo de oxigênio. Bom, mas e daí? Juntei isso à associação anterior e vislumbrei um início de história: um sujeito comeu uma empada estragada, que provocou uma reação alérgica em forma de brotoejas, que o levou ao hospital. Não, não. Sem chance de ir pra frente com isso. E pensei comigo mesmo: se a questão é estímulo aleatório, eu não precisaria necessariamente me prender ao dicionário. Pronto, achei em quem botar a culpa: os escassos estímulos do pai dos burros estavam tolhendo meu incomensurável potencial criativo. Bastava que eu olhasse à minha volta, ligasse a TV, fizesse uma caminhada e deixasse fluir os múltiplos cruzamentos que me passassem pela cabeça. Genial!!

Optei pela caminhada. Coloquei short e tênis e me pus em marcha acelerada, prestando atenção em tudo o que me aparecesse pela frente. Olhando para o asfalto, vi uma pequena rachadura. Esta me levou, por um paralelo megalômano, às fendas do Grand Canyon, que por associação geográfica me trouxeram à mente os famosos letreiros da palavra Hollywood, em Los Angeles. Daí foi um pulo pra me lembrar da marca de cigarros. Que trouxe à lembrança a querida vovó Chiquinha, que nos áureos tempos de fumante inveterada chegava a consumir dois maços de Hollywood por dia. Da vovó aos bombons de cereja Prink, que ela adorava e escondia dos netos no fundo do guarda-roupa. Do guarda-roupa ao Mistério de Irma Vap, onde o Marco Nanini e o Ney Latorraca trocavam de indumentária dezenas de vezes a cada apresentação. Do teatro à cortina, da cortina ao pano, do pano ao tear. Tear me lembrou Tears, lágrimas em inglês. Pára, pára, pára. Interrompi a caminhada e o raciocínio. Comparei a última idéia ao ponto de partida e não vi nada que se assemelhasse a um estalo redentor. Decidi voltar pra casa.

O fato é que, com essa história toda, cheguei até os quase 3000 caracteres que precisava pra completar minha coluna. E se você chegou até o fim deste texto, é sinal de que minha viagem pela aleatoriedade não foi totalmente em vão. Ou foi?

ELE É O CARA. AINDA.

Sinistro como aquele dia, só a fachada do Dakota - o paquiderme gótico que em nada lembrava você e suas roupas brancas pela paz. Gente do mundo todo aos prantos na frente da sua casa, teimando em não acreditar. Foi muita areia pros meus 16 anos, cara. Ainda que a milhares de quilômetros do epicentro, e só acompanhando pela televisão, sacudiu muito a estrutura. O Lucas Mendes ali, todo encapotado no Central Park, até ele parecia não encontrar nexo no que estava narrando.

Sempre que se falava em Beatles Forever, pra mim pelo menos era pra valer. Eu cresci confiando cegamente nessa promessa de imortalidade. E sem mais nem menos, aquela sacanagem. Minha mãe foi quem me deu a notícia, na manhã do day after. Sabia do meu fanatismo, me levou pra um canto, pediu pra que eu sentasse, que tinha uma notícia triste. Vinte e cinco anos depois, cara, você continua fazendo os lonely hearts baterem descompassados. Yeah, yeah, yeah. A respiração suspensa e um choro difícil de conter, não mais por causa da sua morte, mas por sentir você mais vivo que antes de ser assassinado. Você chamando Julia, pedindo Help, são coisas que a gente ainda escuta em estado de graça e com os pêlos todos eriçados. Os que já beiram os 60 – que viram você surgir, brilhar e partir – ou a garotada de 15, que só agora está ouvindo falar de você.

Fica à vontade, Mr. John. Nem preciso dizer que a casa é sua, olha só quantos discos seus. Acenda o tipo de cigarro que quiser, sirva-se do meu uísque, toque o meu piano. Só não fica tão ansioso, cruzando e descruzando as pernas o tempo todo. Relax, man. Pode se esticar no sofá, vou ligar para o delivery e pedir uns sushis.

Você afirmava que Deus era uma invenção, e é possível que você tenha dado de cara com o nada depois daqueles quatro tiros. Mas talvez o fato de não-ser valha mais a pena do que continuar por aqui, vendo tudo tão oposto ao que você imaginou. É, porque não deram chance à paz coisa nenhuma. Nunca estivemos tão longe dela. A despeito de você ter deixado a CIA com o pé atrás, o Nixon de cabelo em pé, o Elvis enciumado. Apesar de ter apontado o caminho pros filhos desorientados da guerra fria. Você, cara, teve peito de devolver a medalha pra Rainha. Deu uma banana pro show business e os managers das gravadoras pra ficar fazendo pão, lavando o chão e ninando o Sean. Que absurdo, o babá-beatle. Onde é que ele quer chegar, o que é que ele quer dizer? É, meu, você precisou ser muito homem pra virar dono de casa.

Como dizia uma de suas últimas letras, “a vida é o que acontece com você enquanto está ocupado fazendo outros planos”. E os nossos planos, cara, são ainda mais tolos e mesquinhos do que em 1980. Junto com o adeus a você, um caminhão de utopias rolou ribanceira abaixo. É frustrante ver hoje a sua figura desvinculada da sua história. Da sua verdadeira história. O que se vê é você reduzido a botons e pôsteres, desde as rodoviárias até as galerias de arte – o John de terninho e bota, o psicodélico, o hippie barbudo, o combativo, o pacifista. Mas da sua mensagem, que é o mais importante, muito pouco se fala. Ficam na superfície, no guru a quem se deve adoração sem que se saiba o porquê.

É irônico e entediante encontrar, por essa época do ano, seus CDs dentro daqueles trenós de papelão nos hipermercados, ao lado da gôndola de panetones. A mídia faturando em cima da aura messiânica criada em torno de você, fazendo girar a engrenagem que financia a guerra que você combatia. Transmitem especiais em sua homenagem, celebram com fingido pesar a sua morte, transformam você num papai noel magro, o som ambiente dos shoppings mandando ver o seu “Happy Christmas”. Eles não entenderam nada. Pior: fingem que não entenderam.

Até, cara. Dá um abraço no George.

MISSA

A hora em que o Senhor reúne suas ovelhas é a hora em que a província é mais tacanha e ensimesmada, a urbe é vila das almas e todos acreditam piamente na fraternidade entre os homens. Unem-se no mesmo rito o mendigo à porta da igreja e o turco da loja, que não fia nem à mãe. Caciques políticos que não se olham na cara ficam, a contragosto, debaixo da mesma abóbada. Todos perfeitamente equalizados na filiação divina, tentando honrar o que do Altíssimo receberam e merecerem a salvação no dia final.

- Andai com retidão pelos caminhos do Senhor. A quem muito foi dado, muito será cobrado.
O sinal da Cruz com água benta. Um olhar à esquerda e outro à direita, pra saudar os conhecidos antes de tomar assento. O Ministro da Eucaristia repassando a primeira leitura. Alô, sssssssommm.

- Vamos ensaiar mais uma vez o canto do ofertório, na página 3 do folheto.
Amalgamam-se velas, incenso, perfumes finos e populares. A igreja cheia. As velhas com suas novenas e missais, véus negros como os arabescos de jacarandá nos altares laterais. Essas velhas que ali fizeram a primeira comunhão, casaram-se e ali teriam, mais cedo ou mais tarde, sua missa de corpo presente. Enxergam a si mesmas no ataúde, em meio à homilia derradeira, imaginando a figura que fariam, como os parentes as vestiriam para a ocasião. E vagariam, os espíritos já fora dos corpos, pelos comentários de noras e filhos, genros e netos. Saberiam de verdade o que sentiam a seu respeito.

O preto da batina do padre, o vermelho vivo dos paramentos, o branco das pipocas estourando lá na praça.
- Será que teria mais um lugarzinho aí?
Cinco em um banco fica apertado, mas não é cristão negar. Oremos. Adoremos. Louvemos. Divaga o pensamento nas asas dos anjos pintados no teto. O confessionário, agora vazio, tão procurado nas horas mortas pelos reincidentes nas faltas capitais e veniais. O padre ouvindo, ouvindo sem olhar no rosto. Uma cortininha roxa e uma treliça de madeira separando o pecado da absolvição.

O toc-toc do salto alto de Dona Bela, ecoando igreja adentro. Poucos sabem seu nome, raros lhe dirigem a palavra. Estranha e circunspecta, a blusa fechada por uns duzentos botões. Sempre chega dez minutos antes, hoje atrasou. Religiosamente senta-se no mesmo banco, o terceiro à esquerda do altar.
Os olhares estáticos dos santos, como que impassíveis diante das preces.
Genuflexório de reflexões. A luz das nove da manhã, coada pelos vitrais, batendo na pia batismal.

- Esse sermão que não acaba mais. O padre hoje está inspirado.
Tudo muito mais solene no tempo do Advento. Olha que lindo o presépio, festões verdes e dourados, cachoeira ao lado da manjedoura. Estranho à liturgia e alheio ao que se passa, o cachorro pulguento fica pra lá e pra cá. Só de igreja tem uns quinze anos. Deve se sentir acompanhado e protegido. Um cão guardado por Deus. As mãos trêmulas do dono da farmácia passeando pelos mistérios do Rosário. Vem com os netos, uma fileira de pimpolhos. Cabelinhos repartidos, banho tomado, roupa de sair. Na hora do “saudai-vos uns aos outros”, vai um tempão até beijar todos eles. O farmacêutico era ateu. Até que teve um negócio, se agarrou ao Poderoso, pediu com fé sua cura, foi atendido e aí está. Convertido e devoto.
- Ave Maria, Gratia Plena, Dominus tecum...
As colunas, arcos e ogivas a elevarem aos céus os clamores de misericórdia e as alegrias pelas graças alcançadas.

O corpo leve: é a paz na alma. A bênção final, amém.
- Olha a pipoca, quebra-queixo, amendoim... Um coquinho para o seu menino?
- Levo sim. Dessa bexiga ele também vai gostar muito.
E lá vão eles, a passos lentos retornando às suas vidinhas, carregando nos corações todo o bem do mundo de meu Deus.