Saturday, December 23, 2006

DUÑA EXPLICA

Abandonando o pedestal onde merecidamente repousa sobre louros, Mestre Duña, num assomo de humildade, se nivelou a nós mortais para dissecar alguns enigmas que há muito intrigam a alma humana.

Frases, comentários ou mesmo interjeições jocosas desse Aristóteles moderno transformavam-se instantaneamente em citações, máximas, enunciados, fórmulas e teoremas. Tais aforismos saíam desgovernadamente de seus lábios, ora em golfadas, ora aos borbortões, mas sempre com a chancela singular de quem é Doutor Honoris Causa pelas Universidades de Harvard, Oxford e Unip.

No intuito de testemunhar o inusitado torvelinho cultural, repórteres da BBC e da National Geographic, PHDs, filósofos e cientistas de todas as vertentes do conhecimento se espremeram por três dias defronte à choupana duñesca, alvo de peregrinação de muçulmanos e católicos, budistas e neo-pentecostais.

As aparições do Mestre se sucediam em intervalos regulares, à janela do seu quarto, onde o Iluminado se apresentava invariavelmente trajando sua túnica de lantejoulas cor de abóbora e azul celeste, a postos para dar vazão à sua cornucópia de saber.

Vamos agora a alguns excertos dessas 72 horas de bem-aventuranças.

Lan House
Trata-se somente de um nome afrescalhado para a conhecida loja de armarinhos e aviamentos, tão familiar às nossas prendadas titias e avós.

Galeorrinídeos
Mestre Duña relutou em elucidar esta questão, julgando-a por demais óbvia. Afinal, sentenciou o guru, quem não sabe que os galeorrinídeos pertencem à família de peixes elasmobrânquios precisa de cola para passar no exame psicotécnico.

Batatinha quando nasce
Obra basilar na formação poética de Drummond, trata-se de um divisor de águas da lírica em língua portuguesa. Recentemente Duña deu à lume um ensaio definitivo sobre o assunto, dele resultando um alfarrábio de 800 páginas que se detém sobre os sentidos recônditos dessa estrofe de quatro versos, aparentemente boçal e despretensiosa.

Garrida
A origem etimológica do termo é um tanto obscura, e se perde em tempos imemoriais. Tão imemoriais que, quando incluído no Hino Nacional, o vocábulo já era arcaico. Esse imemorialismo latente talvez explique porque tanta gente não se lembre da letra ao entoá-lo.

Maxilar
Grande loja de dois pavimentos localizada em Paraiponga, especializada em utilidades domésticas.

“O espelho da vida é a sombra do infinito”
Grafado no courvin da poltrona de um buzunga da Cometa, entre aspas mas sem crédito ao autor, Mestre Duña afirma que este paradoxo há 28 anos vem roubando o seu sono, no vão esforço de decifrá-lo. Se alguém sobre ele for capaz de lançar luz, que entre sem demora em contato pelo e-mail: msguassabia@yahoo.com.br

Sunday, December 17, 2006

ATA DA ASSEMBLÉIA ORDINÁRIA DO EDIFÍCIO ILHA DA GAIVOTA

Primeira pauta: Assuntos Gerais.

Após os procedimentos iniciais de praxe, e contando com a presença de 39 dos condôminos, o Sr. Rodolfo, do apartamento 41, disse que tinha uma queixa a fazer sobre o comportamento da Dona Maíra, do 42.
Segundo ele, ruídos denunciavam práticas diárias de foro íntimo por volta das 21h45, sendo o range-range de sua cama uma afronta aos bons costumes. Indignada, Dona Maíra esclareceu não tratar-se de suposta sem-vergonhice, mas dos exercícios abdominais e de flexão que é obrigada a fazer todas as noites, por indicação médica. E que mesmo que se tratasse da alegada prática, estaria em seu direito e não seria da conta de ninguém o que fizesse ou deixasse de fazer entre as quatro paredes do seu apartamento.

Nesse momento, Dr. Élcio, do 74, pediu a palavra dizendo que a falta de isolamento acústico se deve ao fato do prédio ter sido construído com tijolos baianos, motivo pelo qual era capaz de escutar até a reza da Dona Biloca, sua vizinha do 73. Complementou seu aparte afirmando que, quando quer manter intimidade com a esposa, tem de ligar o aparelho de som no último volume para abafar os naturais ruídos da conjunção carnal.

Isto posto, foi dada a vez à senhorita Elza, proprietária do apartamento 62, que sugeriu à assembléia a mudança do nome do edifício, já que o mesmo não é uma ilha e muito menos abriga gaivotas. Diante do exposto, o presidente da assembléia interrogou a moradora, dizendo se ela não tinha mais o que fazer, observação que provocou palmas em alguns dos presentes e gargalhadas em outros.

Em seguida, o subsíndico introduziu a segunda pauta da reunião: formação de fundo de reserva para a compra de apetrechos natalinos e figuras de presépio para o Natal.

Seu Luiz, do 51, 1º Secretário que acumula a função de tesoureiro, apresentou orçamento de três reis magos, mas recomendou a compra de apenas um, por medida de economia. Referiu-se ainda a um Baltazar em oferta num camelô da Rua Duque, e que a compra do mago de biscuit dava direito a um carneirinho de manjedoura grátis. Trêmula e demonstrando não estar de posse de seu juízo perfeito, Dona Geni do 36 foi taxativa ao afirmar que deixaria de pagar o condomínio caso não se adquirisse também uma ou duas vaquinhas malhadas, para fazer companhia ao carneiro junto ao bercinho do Menino-Deus.

Após acalorada discussão, a maioria dos presentes decidiu que o fundo de reserva arcaria com um presepinho básico e uma fiada de piscas de 200 lâmpadas para ornar a guarita, o qual seria ligado às 20 horas e desligado às 2 da manhã.

Prosseguindo, Dona Carla, moradora do 93, propôs a compra de um novo gira-gira para usufruto do pequeno Rafa, seu filho. Dona Albina, proprietária do 131, disse que “pequeno” era um eufemismo, dada a circunferência avantajada do menino e dos seus 82 quilos capazes de abalar a estrutura de qualquer gira-gira do planeta e arredores, segundo palavras da mesma. O Sr. Eduardo, do 22, argumentou que o gira-gira em questão já era o sexto a ter seu eixo entortado pelo robusto petiz. Ficou decidido solicitar ao Dr. Benício, engenheiro mecânico e morador do 114, um cáculo para determinar a estrutura necessária ao eixo, considerando-se as forças centrífuga e centrípeta versus o peso do garoto.

Procedeu-se então à eleição do novo síndico. De imediato o Sr. Waldemar lançou-se candidato à reeleição, argumentando que ao síndico assiste o direito de não pagar a taxa condominial e que, se não permanecesse no cargo, passaria à condição de inadimplente por não ter como honrar a referida taxa, o que seria pior para o condomínio. Assim, todos assentiram que o Sr. Waldemar prossiga em suas funções pelos próximos dois anos.

Tomada a deliberação, o Sr. Maurício do 173 cobrou do síndico a prestação de contas referente ao último exercício, ao que o Sr. Waldemar se esquivou, dizendo que precisaria de um apartamento inteiro e vago para guardar todas as notas e recibos da contabilidade predial. Não satisfeito com o argumento, o proprietário do 173 ameaçou o síndico com o dedo em riste, dizendo “ah, isso não vai ficar assim não”. Seguiram-se outros insultos até chegarem às vias de fato, aplicando-se mutuamente sopapos, bofetes, voadoras e outros golpes de natureza semelhante, o que obrigou à convocação de nova assembléia de condôminos, em data ainda a ser determinada.

Sunday, December 10, 2006

OCORRÊNCIAS POLICIAIS DA PROVÍNCIA

A loja de armarinhos de Dona Matilda foi invadida ontem por meliantes desaforados, que, após renderem a proprietária, buliram nas partes baixas de sua primogênita. No momento do assalto, a filha de Dona Matilda fechava o caixa. Os gatunos levaram a féria do dia – montante estimado em R$ 29,95, mais dois novelos de lã da marca Cléa e alguns retrozes de linha. A polícia vem empreendendo incessantes diligências no sentido de reaver as mercadorias, mas até o momento só recuperou um dos dois novelos, achado no porta-malas de um Chevette abandonado às margens de um capinzal. O retrato falado do outro novelo foi afixado em vários postes do nosso município e enviado por fax às unidades policiais da região.

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Sansara Mahranta, dono do Espaço Holístico Luz do Oriente, compareceu à delegacia para dar queixa do estabelecimento vizinho, a churrascaria Boizão Grill. O mestre iogue argumentou que o cheiro da picanha na brasa atrapalhava a concentração dos seus alunos na prática da meditação. Frisou ainda que tal odor, misturado ao incenso de jasmim, causava náuseas insuportáveis em pelo menos 70% da classe, e que todos ameaçavam trancar matrícula caso persistisse o fumacê bovino. Até o fechamento desta edição, as partes envolvidas não tinham chegado a um acordo amigável.

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O menor J.L.C. foi detido para averiguações ao ser pego com a bicicleta de outro menor, Z.B.F. Inquirido sobre as razões que motivaram aquele ato reprovável, J.L.C. argumentou que só queria dar uma voltinha, e que devolveria a bicicleta a Z.B.F. tão logo concluísse um passeio no quarteirão. Após uma série de sopapos, cascudos, croques e piparotes do pai da vítima no guri infrator, o Cabo Éverton estabeleceu que o menor deveria, a título de pena, engraxar os coturnos de todos os membros da Corporação, durante um mês, tendo o garoto que fornecer os apetrechos necessários à tarefa: graxa nugget, pano e escovas de polimento, além da caixa de engraxate.

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Na quinta-feira passada, o Vigário Adamantino dirigiu-se ao Distrito para denunciar do sumiço de vinho da paróquia, atribuindo ao sacristão Denófrio a autoria do furto. Como prova, trouxe consigo uma devota de São Judas, a qual, tendo participado recentemente de uma quermesse escolar, identificou o vinho do padre como um dos ingredientes utilizados no ponche do evento.

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Domingo último, por volta das 21h14, o Dr. Augusto Vicentino Soares saboreava calmamente seu chumaço de algodão doce na praça central. No momento em que a Banda Municipal executava “O Cisne Branco”, Dr. Augusto notou um movimento atípico atrás de um arbusto próximo. Remexendo com sua bengala o referido vegetal, deparou-se com sua cadela Yorkshire a copular com um sarnento vira-latas, ambos em frenético vai-e-vem ao ritmo da música. Irado com a intromissão, o vira-latas mordeu um dos calcanhares do doutor, que teve de tomar uma anti-rábica.

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Mais uma vez o jovem Odorico Ângelo Júnior foi flagrado cheirando maconha e fumando cocaína em via pública. O pai declarou que desta feita nada faria para tirá-lo de trás das grades, e que seria um favor mantê-lo trancafiado. A autoridade de plantão disse que seria oneroso sustentá-lo no xadrez, uma vez que a compra de 2 marmitex ao dia no Restaurante Rodoviário custaria R$ 14,60, valor bem maior que a fiança de R$ 10,00 para libertá-lo Assim sendo, o sargento acabou ele mesmo pagando a fiança do viciado, para não comprometer ainda mais o minguado orçamento do Distrito.

Sunday, December 03, 2006

VIDE BULA

INFORMAÇÃO AO PACIENTE
Estudos atualíssimos, patrocinados por alguns dos maiores nomes da indústria farmacêutica mundial, dão conta de que nada pode ser mais frio e impessoal que bula de remédio. De onde se conclui que sua elaboração, doravante, deve contemplar uma abordagem lúdica e interativa com o usuário, em linguagem usual, objetiva e atraente.
Ou seja, a idéia não é que se doure a pílula, mas a bula que a acompanha. Nossa intenção é elevar a temperatura corpórea do paciente, promovendo assim maior calor humano entre nosso laboratório e o consumidor.
APRESENTAÇÃO
Olá, amigo(a)!! Meu nome é Cilantilopidatreil, e de agora em diante serei seu companheiro inseparável. Estaremos juntos pelo menos 3 vezes ao dia, após as refeições. Tudo bem que você vai ter que me engolir, mas espero que isso não seja motivo para você me partir ao meio.
COMPOSIÇÃO
Letra de Helmut Pfizer. Música de Ed Roche e Sebastian Bayer. Originalmente concebida para execução em Lá Maior, acompanhada ou não pelo Regional do Evandro e pelo Renato e suas Blue Cápsulas.
INDICAÇÕES
Siga rigorosamente a seguinte orientação médica: na segunda quadra, vire à direita. Ande mais cinco quarteirões e, assim que encontrar a agência do Bradesco, pegue a sua esquerda e vá em frente, até o terceiro semáforo.
A farmácia fica bem ao lado da banca de revistas.
AÇÃO FARMACOLÓGICA
Espasmos involuntários nos músculos da face, contrações abdominais de natureza aguda, perda progressiva do fôlego, do senso crítico e da urina, nos casos mais graves.
INTERAÇÕES MEDICAMENTOSAS
Cilantilopidatreil não deverá ser administrado simultaneamente com moquecas em geral, pastilhas Valda e lança-perfume de fabricação caseira. A administração pela burocracia estatal também poderá trazer sérios danos ao moribundo, por provocar sonolência excessiva.
REAÇÕES ADVERSAS
Variam de discretas erupções cutâneas até o óbito, relatado em 95,7% dos casos. Por provocar diminuição da libido, o coito deve ser interrompido tão logo se inicie. Raciocínio desconexo, amnésia irreversível e descamação atípica no calcanhar direito foram efeitos detectados nos grupos de controle, durante a fase de testes do produto.
PRECAUÇÕES
Sob o efeito de Cilantilopidatreil, manetas que dirigem máquinas operatrizes precisam ser permanentemente monitorados por familiar responsável, devidamente habilitado e com CNH dentro do prazo de validade.
PACIENTES IDOSOS
Pesquisas recentes constataram episódios de disritmia na bateria da Velha Guarda da Portela.
CONDUTA NA SUPERDOSAGEM
Caso ocorra, seja ela intencional ou acidental, raramente acarreta risco de vida – apenas de morte. Quando associada a depressores do Sistema Nervoso Central, como o álcool e seus derivados, induzir o vômito ou realizar lavagem gástrica, ainda que o álcool em questão seja um Johnny Walker Blue Label.

Não desaparecendo os sintomas, reze. Todo medicamento deve ser mantido fora do alcance das crianças, inclusive Melhoral Infantil. Conservar em local seco e fresco. Ui!

Sunday, November 26, 2006

MORTOS DE RIR

O Willy não precisava ter ido tão cedo. Não precisava mesmo. Uma desatenção nossa e olha ele aí, finado. Ainda se tivesse procurado o fim – tomado veneno de rato, dado um tiro na têmpora, um enforcamentozinho. Mas assim, pego de surpresa, ver-se defunto da noite pro dia e a contragosto, não deve ter sido fácil.

Bom Willy, tão viciado em vida e de repente nessa situação. Em quase todas as sepulturas do cemitério, a estrelinha e a cruz, a data da morte e o dia do nascimento. Com estrela você combina, mas cruz não é o seu estilo.

Prometo que, tão logo o padre encomende sua carcaça, cairei fora desse latifúndio de esqueletos e entrarei no bar mais próximo para beber à nossa saúde. À minha aqui embaixo e à sua aí em cima, seu desalmado. Embora beba quase nunca, farei isso por você.

Aguardo, sua besta, você numa noite dessas pra me puxar as pernas, fazendo gracejo das coisas sagradas. O céu nunca mais será o mesmo depois da chegada de “Aero Willy”, o querubim gozador. Tô até vendo você tentando empurrar uma rifa pra cima de São Pedro ou convencendo Santo Expedito a ser seu fiador numa confortável nuvem de dois dormitórios.

Quero que fique em relevo no mármore branco e no granito preto desses túmulos um pouco dos melhores momentos que tivemos. Um dia, querendo ou não, a vida vai me mover um processo de desapropriação e virei também morar por essas bandas. Seremos vizinhos de novo, como éramos de rua.

Agora é essa serra azulada circundando o campo santo. Deixar você assim desamparado, no meio de tão desanimadas companhias, é de cortar o coração. Sinto um espírito me soprando ao ouvido: “escreve aí no seu texto pra cuidarem mais da gente. Só lembram que a gente existe dia 2 de novembro, isso é uma desumanidade”. É justo. Inexistente também existe. Não é porque morreu que deixou de merecer consideração.

Assim como os vermes daqui a uns dias avançarão com menos apetite sobre os seus restos, as lembranças suas também irão perdendo o brilho e a nitidez, sei disso. Sei do inevitável disso. E deixo subirem à mente as pipas todas que soltamos e milhões de bolhas de sabão, da época em que a gente tinha o tamanho dos anjinhos tocadores de trombeta, iguais a esses da tumba aqui do lado.

- Acorda aí, palhaço. Que cara de sonso é essa...
- Willy, é você? Eu tava sonhando ou é você que veio me buscar?
- Dá um cigarro, vai. Anda.
- Tá, mas primeiro me conta o que é que está acontecendo.
- Calma, tudo a seu tempo. E tempo a gente tem de sobra daqui pra frente.

Caímos na gargalhada. Acesso de riso no cemitério, coisa mais sem cabimento. Rimos tanto que apagamos as velas com as nossas risadas. Ao fundo, a trilha de Nino Rota para “Oito e Meio”. O coveiro passa por nós, mede a dupla de cima a baixo e faz um “tsc-tsc” de desaprovação.

Sunday, November 19, 2006

MANIFESTO PELA VOLTA DO TEMPO

O sujeito que assina este mal-arrumado libelo, em nome de toda a humanidade (à exceção talvez dos anciãos com mais de 100, cheios de saúde e paradoxalmente fartos de viver), vem a público exigir que o tempo volte o mais rápido que puder. E que fique claro que não me refiro à volta no tempo; o que reivindico é o retorno do próprio tempo, calmo e humilde, à vida das pessoas.

É espantoso como tudo, há uns poucos anos, levava muito mais tempo para ser feito. E quanto mais vagaroso era o processo, mais tempo, estranhamente, sobrava pro cidadão.

Criava-se o porco no quintal. Matava-se o bicho. Jogava-se água fervente sobre o pêlo, a ser raspado na navalha. Abria-se a barrigada, separava-se as partes, temperava-se e deixava-se da noite para o dia mergulhado em marinada. Providenciava-se a lenha, acendia-se o fogo, cozinhava-se lentamente e degustava-se mais lentamente ainda. Era um tempo de sobra que não acabava nunca mais, de enjoar de fazer nada. De botar cadeira na calçada, chamar o vizinho pra uma breja e fomentar o diz-que-diz-que. O tempo era artigo barato, era preciso arrumar um jeito de se livrar dele. De matá-lo de alguma forma antes que ele matasse a todos de tédio. Tempo havia para debruçar na janela, jogar paciência, montar quebra-cabeça. Fazia-se a sesta, lia-se pela satisfação de ler, não pela urgência de manter-se up-to-date.

Voltando à feijoada, dessa vez à rala, insípida e inodora versão de hoje – em lata e aquecida no microondas. Não presta-se atenção no que se está comendo, pois no tempo em que se engole a gororoba ao molho de flavorizantes vê-se a TV, atende-se ao celular, confere-se o extrato, pensa-se nos termos do relatório a ser entregue o mais tardar às 12h30. E são 12h20, meu Deus do céu.

Se aqui é assim, imagine lá, do outro lado do mundo. Valorizar o tempo é com os japoneses. Ninguém tem know-how mais apurado. Por algum mecanismo ancestral, sabem os nipônicos desde tenra idade que tempo é recurso não-renovável, e conseqüentemente precisam consumi-lo da mais produtiva maneira. Lá na placenta, enquanto espera ficar pronto pra vir ao mundo, o japonesinho deve aproveitar o líquido amniótico pra cultivar algum legume hidropônico. Ou já reserva aquela água que o rodeia pra abrir sua lavanderia quando nascer. Talvez ache oportuno estudar a anatomia da mãe e já ir se afiando para o vestibular. Pelo menos não vai zerar em biologia...

Melhor ainda que voltar, amigo tempo, seria ver você parado. Isso mesmo. Nem correr, nem andar, nem se arrastar. Simplesmente parar, perder a função de tempo e eternizar-nos a todos.

E vamos ficar por aqui, porque o tempo do leitor é curto e seria uma lástima continuar a desperdiçá-lo. Ainda mais comigo.

Sunday, November 12, 2006

MADE IN CHINA

Guarda-chuva à prova d’água
Um avanço sem precedentes, fruto de 14 anos e meio de pesquisas e testes exaustivos na região da Manchúria.

Nikei Mouse
Idêntico ao camundongo orelhudo licenciado pela Disney, que custa uma fortuna por aí. Além de mais em conta, já vem com leptospirose.

Controlador Remoto de Vôo
Os profissionais que controlam o tráfego aéreo não precisarão mais estar fisicamente alocados em suas bases de operação. Nas suas casas, confortavelmente acomodados às suas redes e cadeiras-do-papai, eles poderão desempenhar suas tarefas com segurança e sem o stress típico dessa atividade. O artefato funciona com quatro pilhas médias. Embalagem com 29 mil pés, tamanho 41 e sem unha encravada.

Água do Rio Jordão (Jordan River Water)
Na verdade, ela não é proveniente do Rio Jordão, mas de um ribeirão próximo à cidade de Shangai, cuja água tem propriedades físico-químicas semelhantes à do famoso rio bíblico. Segundo Jing Ling Long, Gerente de Produto, “o que vale é a fé do crente”.

Respirador de UTI
Precisão e alta confiabilidade distingüem esse produto da concorrência. Possui um apito que avisa quando o presunto ficou pronto.

Comida Chinesa
Assim como os brasileiros não ingerem feijoada e acarajé todos os dias, também os chineses não se alimentam exclusivamente de yakisoba e rolinhos primavera. O chinês comum, ou seja, aquele igualzinho aos outros, come rotineiramente arroz, feijão, bife e batata frita. E é isso o que o consumidor encontra nesse lançamento, em caixas de 500g.

Grande Muralha de bolso
Miniatura em escala da única obra do engenho humano que pode ser vista do espaço a olho nu. Aparentemente essa muralhinha de resina não tem serventia determinada, o que nos autoriza afirmar que se trata de um artigo multiuso.

Rapadura
Concebida numa prisão de segurança máxima, por um chinês que pegou 20 anos de cana. A exemplo da similar nacional, ela é doce mas não é mole, não.

Negócio da China
Kit completo para montar sua loja de 1,99. Custa 1,99.

Caixão de defunto
Feito em isopor imitando madeira, sua constituição é mais frágil que as cestinhas de morango vendidas na beira da estrada. A grande vantagem é que, caso o defunto venha a despertar depois de enterrado, poderá libertar-se rapidamente de sua urna mortuária.

Moto-Serra
Produto ecologicamente correto. Ao contrário dos modelos conhecidos, que serram os troncos, essa apenas quebra o galho.

Fogão Meia-Boca
Depois dos congêneres de seis e quatro bocas, o mercado ganha agora essa versão desenvolvida especificamente para anões, pigmeus e velhinhos em fase de encolhimento. O consumo de gás, garante o fabricante, é reduzido pela metade.

Sacolinha de supermercado
Basta de esperar a sacolinha ficar cheia para arrebentar. Muito mais prática, essa já vem arrebentada, dispensando o penoso processo de enchimento.

Foto do Che
A mesma que ornamenta as paredes das repúblicas de estudantes e ilustra 97,3% das camisetas das feiras de artesanato. A única diferença são os olhos, ligeiramente puxados.

Vachina
Numa só aplicação, imuniza o indivíduo contra todos os males da humanidade. Em ampolas de 5, 10 e 15ml.

Mao Tsé Tang
Líder chinês em sucos concentrados de preparo instantâneo. Nos sabores mixirica mixuruca, uva-passa e macaúba.

Sunday, November 05, 2006

A LUNETA

Na embalagem havia um enorme splash, onde se lia: “Montagem fácil e rápida”. Bom, dois dias e duas noites não é tanto tempo assim. O suficiente para encaixar nos lugares certos as lentes, roldanas, parafusos, porcas e cilindros de diferentes calibres e tamanhos.

Custou mas valeu, telescópio e tripé montados. Agora, ao desfrute. Ao merecido desfrute - porque que de ferro, só a luneta. Marca Superrvision, zoom de 1600 vezes, nitidez absoluta.

Primeira parada. Uma enfermeira dando comida na boca de uma velhinha em uma cadeira de rodas. Ai, que estréia mais sem glamour. E a enfermeira era mais velha que a velhinha.

No apê ao lado, uma bruta discussão. O engraçado era ver apenas as bocas se mexendo, os braços gesticulando, os socos na mesa, os rompantes coléricos e não ouvir absolutamente nada. Pastelão de cinema mudo, só faltou torta na cara.

Vamos lá, meu povo, cadê a sem-vergonhice? Duas horas e quinze e nenhuma mulher sem sutiã passando do banheiro para o quarto. Nem uminha. Tá louco, era o caso de devolver pro fabricante. Telescópio que se preze não faz um papel assim.

Três andares acima, um cara solitário no sofá, o nó da gravata meio afrouxado, à frente de uma TV de plasma. A lente é poderosa, dá pra ver a programação que o sujeito está assistindo. A sala escura, ele zapeia. A luz do aparelho refletida em seu rosto se altera a cada mudança de canal. Enfia um dedo no nariz. Que nojo, não volto mais na sua casa, seu sem-educação. Isso são modos?

No quinto andar havia uma loira de tirar o fôlego, há tempos já a observava a olho nu. A vadia não saía do quarto, dando mole pro primeiro telescópio que se habilitasse. Mais que depressa, zoom máximo na dita cuja. Era loira mesmo, e seria perfeita se não fosse um pôster. Duplo azar: além da mulher ser de papel, o quarto com certeza era de macho. Castigo pouco é bobagem.

Na noite seguinte, a caçada continua. Ao mirar no décimo-sexto andar do Edifício Itapuã, sua luneta dá de cara com uma outra luneta apontando exatamente para ele. Sim, tinha certeza que era pra ele. O voyeur do voyeur, a perversão das perversões.
Assim que os olhares telescópicos se cruzaram, tentaram até fingir que não se viram. Uma luneta virou pra esquerda, outra pra direita, como se assobiassem, disfarçando.

Depois de umas dez janelas sem nada de interessante à vista, ele finalmente achou algo com que se entreter. Após um prolongado “Nooooooooooosssa!”, ali parou e ficou. Puxou até uma cadeira pra se acomodar melhor.

- Vai, vai, vai...
Uma voz feminina e muito familiar responde ao seu ouvido:
- Vai o que, Claudinho?

Era a esposa. Ô mulher pé de pluma. Quando deu pela presença, já estava no cangote. Mão na cintura, cobrando esclarecimento.

- Vai? Ah, sim. Vai logo, planeta, aparece logo, planeta...

- Planeta? Até onde eu saiba não tem planeta nenhum desse lado do céu. E mesmo se houvesse, esse prédio enorme aí em frente não ia deixar você ver nada.

- Nossa, é mesmo. Nem tinha reparado.

- Mãos ao alto, seu safado. Não mexe um milímetro nessa porcaria. Deixa eu ver o que você está vendo. Sai daí, sai daí!

Se aquilo era um planeta, só poderia ser Vênus. Um raro espécime do belo sexo, dessa vez de carne e osso, em trajes e poses que, digamos, acusavam claramente não tratar-se de uma freira.

- Sabe como é, testando o foco, querida...

E foi assim que, naquela noite, ele acabou vendo estrelas.

Sunday, October 29, 2006

APARTAMENTO 607

Naquele cubículo eu a amei mais do que seria o bastante a dois mamíferos normais. Ou mais do que seria conveniente aos olhos e ouvidos dos vizinhos.

- Essa penugenzinha mais espessa caminhando pro seu umbigo, olha só.
- Ah, seu bobo. Cada uma...

Viro pro outro lado e dou com o peixe em zigue-zague ali no aquário, assustadinho. A falta de gravidade, zumbe a bomba de ar, há um verde musgo nos cascalhos e o reflexo da gente distorcido no vidro.

Quero que a tarde plane sobre a pólis desse jeito, com a tv ligada e nos ligando por um zonzo abandono de afazeres. Além do mais, há quase um tudo nesse nada, e é um estrondo a brisa leve nas avencas. Que mais a gente pode desejar, a não ser o dilatamento do tempo governando o espaço nosso?

- Alguém acendeu um aqui perto, sente o cheiro.
- Cheiro é o seu, meu bem.

Cheiro é o dela. Estrógeno concentrado nos cabelos fininhos da nuca. A falta que você fez enquanto hoje não chegava, se soubesse. Se soubesse se arrancava de onde estava e se atirava sem vergonha sobre mim, antes do prazo combinado e dos procedimentos cumpridos.

Os dentes todos, brancos e seus, rompendo a carne da maçã. Que bom é assim, vendo você sem que se saiba sendo vista. O lençol se espraia em ondas pela cama. Florzinhas, detalhes, coisas de mulher que põe sentimento no cio. Há uma batalha em andamento nesses três metros por quatro, sem vencedor nem vencido, só a disputa e a conquista do território do outro. Estar dentro do outro lado, ser os dois lados e um só. Depois é água e bandeira branca, amor.

- Duas coisas, meu anjo: pede uma pizza e traz a manta.
- Sim senhora. E eu, também estou no pedido?

É de perder a cabeça quando ela aciona esse riso, como se abrisse um preview do mistério de que é feita. Vinte minutos de cócegas e guerra de travesseiros. Nada muito mais sério pode rolar daí pra frente, eu sei mas finjo que não e tento falar de nós dois enquanto conto suas estrias.

- Espera aí que eu já volto, o motoqueiro tá buzinando.

Uma sirene de polícia e um alarme disparado Sua pulseira sobre a antologia de Drummond. O relógio e as chaves de casa, do carro e de nós. Trago os talheres e os pratos.

Gosto tanto do atrevimento, tão raro e tão bem-vindo. Das poucas vezes em que você se presta a me domar. É claro que a porta pode se abrir para uma procissão de camelos, mandalas de pedra podem passar razantes sobre nossas cabeças que tudo bem, nada que assuste ou afaste os olhos cravados nos olhos.

- Me ajuda aqui com o fecho do vestido.

Se ela tem mesmo que ir, que vá cheirando a mim. A saciedade é uma ilusão que dura quase 10 minutos. Tudo o que vier a acontecer será só ínterim entre sua partida e seu retorno incerto.

O que consola é você deixar pequenos vocês nos arredores. Batom no copo, cabelo no ralo. Uns rastros poucos que duram, quando muito, até amanhã. E amanhã é muito longe da outra vinda, quando aqui será o nirvana novamente.

Thursday, October 26, 2006

O FILOSÓFO DUÑESCO FALA À PROVÍNCIA CREPUSCULAR

Por Lauro Augusto Bittencourt Borges

Há tempos, mais de ano, este escriba labuta por uma entrevista com o grande —e quase inacessível— Mestre Duña, o sábio multicultural, o navegante-mor de todas as áreas do conhecimento humano. Nas esquinas crepusculares, fuçando aqui e acolá, consegui apurar que Marcelo Sguassábia, “carpinteiro” do marketing e boa pena lá do 2º Caderno, é íntimo do Mestre. Tão íntimo que convenceu o filósofo duñesco a bater um pingue-pongue rápido com O MUNICIPIO. Através do “carpinteiro”, ele assim assentiu com o pedido do bate-papo: "Se é para o bem de todos e felicidade geral dos sem-noção, diga ao Lauro que concedo a entrevista".

Mestre, além de seda pura e alfinetadas, o Parlamento brazuca vai ganhar o que com a eleição do Clodovil?

Ganhará um ser bufante: bufa, bufa, bufa e não arregaça as mangas. Todavia, Clô deverá apresentar boas emendas, já que é profissional da costura.

Num eventual segundo mandato, o presidente Lula vai manter os fundamentos sóbrios da política econômica ou vai soltar a franga num “pacotaço” para aterrorizar a “zelite”?

É praticamente certo que soltará a franga —e franga das boas, com apito termométrico que avisa quando fica pronta. O referido “pacotaço” aterrorizará não somente a “zelite”, mas sobretudo a “Celite”, pois será uma verdadeira m..., se é que me entende.

Entendo, Mestre, entendo. Mas continuando, José Serra é um notívago que tem a fama de acordar assessores durante a madrugada para falar de trabalho. Pensando na saúde dos adjuntos, como fazer para que o governador eleito durma pesado da meia-noite às sete da manhã?

Simples: basta que ele ligue, já acomodado no leito, um Geraldo Walkman com fone de ouvido e músicas new-age. Minha gravadora, a Duña Records, coloca desde já o seu catálogo à disposição do insone governador.

O churrasqueiro do presidente Lula o colocou um maus lençóis com o caso do dossiê. É sabido que o cara tem nome de chuveiro —Lorenzetti. Nas suas acuradas pesquisas, o senhor detectou uma propensão maior para o crime em churrasqueiros que têm nome de chuveiro? Vide também o escândalo “Romualdo Corona”, churrasqueador da tucanada crepuscular, acusado de desvio de toneladas de macaúba e que, por isso, quase derrubou o prefeito Teixeirinha, a quem assessorava em assuntos macaúbicos e afins.

Admitir a citada propensão tão somente pelos exemplos de Lorenzetti e de Corona seria atitude inFAME. Quanto aos desvios de macaúba, os autos dão conta de que o homem-chuveiro levava voltagem nas transações, avaliadas em 110 e superfaturadas por 220.

Mestre Duña, ouvi falar do seu apreço por esta província crepuscular. Corre um boato que o senhor veraneia às margens do Jaguari e que até já freqüentou como visitante a Seita da Macaúba Alucinógena. Essas informações procedem, venerado Mestre?

Esses paparazzi não dão folga, já descobriram a versão crepuscular do meu Oráculo... Na verdade, revezo entre duas propriedades que mantenho na região —um pesqueiro às margens do Jaguari e uma chácara no Bairro Alegre. Para despistar a equipe da Revista “Duñas”, só vou pra Sanja disfarçado de Marcelo Sguassábia, já que aí ninguém conhece ele mesmo. Freqüento com assiduidade a Seita da Macaúba Alucinógena, na condição de aspirante ao noviciado, e devo ao gosmento xarope minha sempre acurada lucidez.

PS 1: Mestre Duña (pronuncia-se Duña), introduziu a filosofia duñesca em solo brasileiro, é Marcelo Pirajá Sguassábia nas horas vagas e fará dobradinha com o Bartazá nas próximas eleições. Duña Neis!

PS 2: Este escriba é grato ao Marcelo pelo esforço de reportagem. Captar as palavras do Mestre é tarefa hercúlea. Valeu a tabelinha, amigo, “carpinteiro” da propaganda e do bom vernáculo.

Sunday, October 22, 2006

A HERÓICA TRAJETÓRIA DE UM JORNAL

A um bom jornal compete informar, denunciar, ser voz e guardião dos justos anseios da comunidade. Até aí todo mundo concorda. Mas um jornal pode ter outros papéis. Bem menos nobres, é verdade, mas bastante oportunos dependendo da ocasião.

O fato é que um exemplar de jornal nem sempre tem comportamento exemplar. Não que ele se comporte mal – as pessoas é que geralmente se comportam mal com ele. E aí me refiro ao jornal como objeto de estranhas e incontáveis serventias, ou seja, ao que ele é capaz de se prestar depois de lido.

Marcador de livro, por exemplo. Prendedor de porta, tapa-goteira, embalador de copo em caminhão de mudança, aparador de vazamento de óleo no carro, tampa de panela, forro de casinha de cachorro e de gaiola de passarinho. Até pra cobrir defunto ele serve.

E que dizer daquela sua tia-avó, que faz o coitadinho de leque durante aquela visita rápida de 7 horas e meia em pleno sábado?

Acender fogo de churrasqueira é outro emprego comum. O primeiro caderno você encharca de álcool para acender o fogo. O segundo você usa para abanar o braseiro.

Alguém leva o jornal para a mesa do escritório, ao lado do telefone. Pronto. É o que basta para que o abnegado matutino ganhe indecifráveis rabiscos. Anotações de telefones, endereços de sites e e-mails, rubricas, declarações de amor e até receitas de bolo anotadas em suas margens. Há os que prefiram preencher com caneta ou lápis as letras “O” das manchetes e subtítulos, enquanto em intermináveis conversas com a namorada.

Atire a primeira pedra quem nunca usou um jornal dobrado em oito pra servir de calço de mesa. Lembro do tempo de faculdade em que morava sozinho, numa quitinete. Meu calço era um José Sarney com bigodes ainda negros, então no auge da popularidade com o redentor “Plano Cruzado”. Nunca tive alguém tão poderoso aos meus pés, me servindo gratuitamente durante anos.

E quando tem serviço de pintura em casa? O pintor chega de manhãzinha e, com ele, o aguardado jornal. Ele pede jornal velho pra forrar o chão. Velho não tem. Só o do dia, que você ainda não leu. Por eliminação, você fica com as partes das notícias, artigos, crônicas e classificados. E entrega a ele os balanços de empresas, editais de convocação, avisos de licitação e os obituários. Pronto, já dá pra ele se divertir enquanto você devora o que mais interessa. Na varanda ou no quintal, evidentemente, porque não dá pra suportar nem o cheiro da tinta nem o pagode que ele assobia.

Há de convir o leitor que é de praxe o jornal do fim de semana – ou o que restou dele – pernoitar de domingo para segunda no sofá da sala. E segunda é dia que a faxineira vem. Espana pó aqui, limpa azulejo ali e eis que o ás da piaçava vê um ser rastejante entre a copa e a cozinha. Corre pra sala, passa a mão no jornal e Paf !. Errou. Outro Paf. Quase. Mais um, uhhhh por pouco. Até que acerta na mosca, quer dizer, na barata. As vísceras da bichinha se estendem por todo o terceiro parágrafo das notas policiais. Lá vai o jornal amigo para a lixeira da lavanderia. A escala ali é de umas poucas horas para então cair no sacão preto do lixo do quintal, em meio a toda sorte de resíduos, orgânicos ou não.

No dia seguinte o jornal é recolhido, vai para reciclagem e volta para a porta da sua casa em forma de outras notícias, todas extremamente desagradáveis: os boletos de conta de água, de luz, de telefone. É quando você amaldiçoa o mandatário supremo que aparece todo dia no jornal. E sente até saudade do Sarney, estimado calço do pé da mesa.

Thursday, October 12, 2006

Monday, October 09, 2006

DELETADOR DE SAUDADE - MANUAL DO USUÁRIO

No Menu Principal do programa, escolha “Definir Saudoso”. Aparecerão na tela os modos: amigo(a), namorado(a), noivo(a), cônjuge, pai, mãe, filho(a), amante, caso, rolo e ficante. Escolha e dê Ok.

Em seguida, maximize o box “Características Físicas”. Preencha os campos Idade, Altura, Peso, Cor de pele e de cabelo, Estilo de roupa, Classe Social, Escolaridade, Convicções Ideológicas e nº do Pis/Pasep.

Vá até a janela “Sinais particulares”. Se houver algum, marque e indique a parte do corpo onde se situa: Cicatriz, Pinta, Tatuagem, Piercing, Botox e Silicone.

Escreva no editor de textos frases que a pessoa falaria com mais freqüência para você. Para que as falas tenham sotaques e inflexões personalizadas, vá até Opções, selecione Definir Modulação de Voz, escolha a mais conveniente e clique em Aplicar. De quinze em quinze minutos as frases soarão no alto-falante do computador, em ordem aleatória ou mediante programação específica. Exemplo: mãe falando “Tá na mesa!!!” ao meio-dia e às sete da noite.

Inserir final de frase. Recurso interessante, não disponível na versão 6.2 do programa. Você pode escolher entre: “Né?”, “Entendeu?” “Certo?” “Ok?”.

Ainda no editor de textos, liste uma agenda básica com os compromissos do seu dia-a-dia. Esses dados serão automaticamente transferidos aos nossos servidores. Para que fique realmente próximo em todos os seus momentos, o ente distante saltará na tela como uma janela pop-up, lembrando cada um dos afazeres programados.

A área de trabalho do computador – ícones, papel de parede e descanso de tela, também pode ficar com a cara do sumido. Além disso, o programa permite a instalação de “Oi” e “Tchau” da pessoa, quando da inicialização e do fechamento do sistema operacional.

Nosso programa enviará a você e-mails em nome do saudoso. Para que não falte assunto, é preciso preencher o menu “Áreas de Interesse”. Selecione as mais adequadas. Você pode responder aos e-mails. Só não conte com a resposta da resposta, porque aí também já é demais.

O Menu Privé é acessado mediante senha, e deve ser utilizado por usuários que mantenham ou mantinham relações carnais com o ausente. As opções vão desde “Não, hoje estou com dor de cabeça” até “Foi bom pra você?”, passando pelo indefectível “Caramba, isso nunca aconteceu comigo antes”.

Lembramos que o nosso revolucionário produto deleta a saudade através de três níveis de operação: Ar da Graça, Presença Marcante e Repulsa, sendo que o modo Repulsa possui a função de transformar a saudade em reação alérgica ao saudoso, pela superexposição de sua figura no computador do cliente.

No menu Opcionais, você encontrará as alternativas “Sachet Chulé” e “Kit Hálito”, que serão entregues em sua casa no prazo máximo de três dias úteis. O sachet é um simulador de chulé do dito cujo. Clique em Suave, Médio, Forte, Extra-Forte ou Deus-me-livre. O Kit Hálito disponibiliza as modalidades Vinagrete com alho, Vinagrete sem alho e com bastante cebola, Cachaça, Uísque 12 anos, Uísque 8 anos engarrafado aqui, Cerveja, Cigarro, Pasta de Dente, Café, Mexerica e Amendoim Japonês.

Você pode desativar temporariamente o programa ou cancelar a assinatura do serviço a qualquer tempo. Para maior segurança, mesmo que o usuário mova o saudoso para a lixeira, um clone do mesmo permanecerá oculto no HD. Para habilitá-lo, clique em “Ajuda” e selecione “Volta, vem viver outra vez ao meu lado”.

Sunday, October 01, 2006

BOBO E SUA CORTE

Já reparou como os termos “Bobo” e “Tolo” têm sinônimos? Dentre tantos, “Doidivanas” sempre me chamou a atenção. Acho que foi lendo algum romance de cavalaria ou livro de Julio Diniz que vi a palavra pela primeira vez. Recorri a um pequeno e nada confiável dicionário e encontrei lá: “Doidivanas: o mesmo que Estouvado”. Fui em “Estouvado” e li: o mesmo que Doidivanas. Ou seja, o pai dos burros me fez de bobo.

Ser bobo vai além de ser otário. Tem também o sentido de ignorante, que contempla como sinônimos uma extensa família de quadrúpedes: besta, asno, jerico, jumento, jegue e simpatizantes. Sem falar da anta e da toupeira.

Fora do reino animal, um dos meus favoritos é “Bocó”, quase um arcaísmo atualmente. Melhor ainda é “Bocó de Mola”, que sugere um upgrade na acepção original (ou um downgrade, no caso).

Igualmente em desuso está o “Monte”. Largamente empregado na zona rural de São João da Boa Vista e adjacências nos anos 70, o vocábulo com toda certeza é oriundo do sul de Minas. Não sei se continua vigindo. Monte é, basicamente, o mala de hoje. Tem o significado de empecilho, estorvo que fica no meio, atrapalhando tudo e empatando a f...

Vamos ao “Tonto”. Ele é parecido com o bobo, mas não é a mesma coisa. O bobo é menos bobo que o tonto. Historicamente o bobo tem ofício definido. Como todos sabem, era ele quem divertia os reis nas cortes medievais. O tonto, por sua vez, é um Mane-Quarqué (que me perdoem meus leitores Manoéis ou Manuéis), um “Girolas” inofensivo. Por falar em Mané, há que se mencionar aqui os derivativos “Mané-Coco” e “Mané-Jacá”, além do conhecidíssimo “Mané-Patola”, a quem algumas populações ribeirinhas denominam simplesmente de “Patola”.

Temos ainda o “Boboca”, que imagino um semi-bobo, aspirante a bobo ou algo que o valha. É mais do que um bobinho, mas é menos que um bobo 100% genuíno. Na mesma classe estão os “Parvos”, a bradarem suas parvoíces em qualquer tempo e lugar.

A letra “P” é rica em sinônimos de lesos: temos, entre outros verbetes, “Palerma”, “Paspalho” e “Pateta” – todos com sentido semelhante e QI idem.

Na letra “T”, além do tolo e da toupeira já citados, encontramos o “Tapado”. Por analogia, podemos caracterizá-lo como um surdo-mudo neurológico. Nada é capaz de permear sua couraça obtusa. Pra cantar a “Florentina” do Tiririca ele precisa olhar a letra.

Capítulo à parte merecem o “Doido de Pedra” e o “Doido Varrido”, mas não serei eu o maluco a atribuir-lhes o sentido. Só imagino um napoleão-de-hospício esculpido em mármore e um serzinho com camisa de força se debatendo entre ramos de piaçava.

O “Abestado” é tão inclassificável que nem é aceito pelo Aurélio. O insigne dicionarista o cataloga como “Abestalhado” – que particularmente considero um tanto quanto articulado para o caso. Abestado é infinitamente mais besta que abestalhado, concorda?

Muitos termos possuem a mesma raiz etimológica, mas gradientes peculiares de significado. Compare “burro” e “burraldo”. O leitor logo perceberá que o burraldo puxa a carroça com mais força. O burraldo é o burro xucro, incorrigível, que deixa o rastro das ferraduras por onde quer que passe. O burro é menos pretensioso na escala búrrica - de vez em quando é capaz de falar coisa com coisa. Muito de vez em quando, mas é.

“Babaca” e “Panaca”. Mesmo que a grosso modo não pareça, entre eles há uma notável diferença. A grafia semelhante esconde na verdade um abismo conotativo. Explico: o panaca é mais lorpa que o babaca. Panaca ri das cenas de torta na cara; já o babaca não acha mais graça nisso, não. Na escala evolutiva, está um degrau acima do panaca. O máximo que o babaca faz é chifrinho nas fotos de festa de aniversário, embora afirme aos mais chegados que já abandonou o vício.

Pouca gente se dá conta, mas “imbecil” e “idiota” não são propriamente xingos. Idiotia e imbecilidade são estados psíquicos – patologias catalogadas e estudadas pela psiquiatria moderna. Psiquiatria que já vem se debruçando sobre os “Seqüelados” e os “Sem-Noção” – neo-zuretas desse insano início de século 21.

Sunday, September 24, 2006

ENSEBADO

Troco numa boa mil megastores de livros novos com cybercafés por um sebo mal arrumado e labirintuoso. Daqueles encravados nos centrões das metrópoles, com as paredes caindo aos pedaços como os volumes que abrigam. Até meados dos 80, nos sebos a gente só encontrava livros e revistas. Hoje tem vinis, CDs, fitas de vídeo e até DVDs. Muitos têm brinquedos usados, jogos de tabuleiro, vitrolas. Outros dividem espaço com brechó. Mas sempre sebos, honestos sebos, sem nenhum vendedor chato querendo te empurrar os últimos lançamentos.

O que freqüento é muito grande, Pra dar uma espiada rápida em tudo vai pelo menos uma semana. Sério. Como a empreitada é longa, pelo comprido galpão há banquinhos espalhados pro pessoal se acomodar, além de umas duas ou três poltronas. Velhas, com o estofamento puído, mas um oásis pras suas costas depois de algumas horas naquela babel.

Embora o habitué do sebo seja, ou quase sempre aparente ser, muito tímido, nem todos têm o perfil do rato de biblioteca. Há o freqüentador funcional, rápido e rasteiro. Esse tipo é pragmático e não gosta de antiguidade, vai lá porque é mais barato, geralmente está atrás de um livro específico pra faculdade ou coisa assim. “Tem? Vou levar. Não tem? Tchau”. Pronto. Sebo nas canelas.

O silêncio impera nos sebos, e isso às vezes é constrangedor. Dá pra escutar a respiração da pessoa na prateleira ao lado. E a consulta aos volumes vai aproximando fisicamente um freguês do outro. Aí a situação fica insustentável, parecida com o “efeito elevador”. Um dos dois acaba cedendo, indo ciscar em outras paragens até o outro desocupar.

Uma vez comprei um livrinho impresso em 1912. O carimbo da livraria, de Campinas, mostrava um número de telefone inacreditável: 27. As ligações, na época, inclusive as locais, eram via telefonista. “Senhorita, por favor, me liga no 36”. Parece morador de prédio falando no interfone com o porteiro.

Imagino a peregrinação daquele volume com o passar dos anos. Pode ter sido dado de presente pra filha mais nova de algum barão do café, que passou pro filho dela, que o doou a uma escola pública, que o emprestou a um aluno, que ficou com ele até vendê-lo ao sebo, em meio a um lote de outros 163 volumes. Quis o destino que estivesse agora aqui, a poucos metros das minhas fuças. E daqui a 100 anos, onde estará?

Não raramente se encontra, como marcador de página, algo devastadoramente íntimo. Veja esse bilhetinho, que veio no meu “Sagarana” de sebo:
“Tiago querido,
Às vezes dizemos besteiras sem pensar. Magoar você é a última coisa que quero nesse mundo. A comida está na geladeira, é só esquentar. Depois conversamos melhor.
Sua esposa, que muito te quer,
Odila Maria”

Odila Maria. Quem será, ou seria? Qual o motivo daquela briga, o que aconteceu e quando? Como era sua vida, a cor dos seus olhos e cabelos, onde morava? A vida lhe deu filhos ou acabou se separando do Tiago pra virar freira? Pode ter morrido tragicamente num acidente de carro, dias depois.

Dedicatórias de Natal, de aniversário, formatura. Páginas com anotações do leitor a lápis, trechos sublinhados. Às vezes umas manchinhas. Goiabada, purê de batatas, misto quente, bobó de camarão? Se não dá pra imaginar o antigo dono do livro, que dizer da origem da mancha.

Na última visita levei 14 vinis. De “Vida Bandida”, do Lobão, até uma coletânea de Ismael Silva. Total de 53 reais. Faz por 50? Faço, claro. Se preferir tem redeshop. É, sebo hoje trabalha com débito automático e cartão de crédito. Mais: há grandes sebos de São Paulo e do Rio com portinha aberta na web. Tudo separado por assunto, descrevendo o estado do livro e ano da edição. E dá pra dar zoom na capa. Você escolhe, compra e entregam em casa.

Mas aí também não tem graça. O legal é banhar-se naquele mar de ácaros e escancarar os pulmões à deliciosa poeira. E foi entre um espirro e outro que pincei um VHS de “As Invasões Bárbaras”, Oscar de filme estrangeiro em 2004. No estojo alguém escreveu, em esferográfica verde: “ L’ Amitié. Notre chanson”. Pesquisei no You Tube. Apareceu uma espécie de clipe em preto e branco, de 1965 e produção rudimentar, onde Françoise Hardy canta “L’Amitié”, uma romântica canção que embala a cena final do filme de Denys Arcand. Acesse e emocione-se. Se for alérgico a ácaros, tudo bem. Pelo menos por enquanto eles não vêm pela internet.

Sunday, September 17, 2006

ANGU À MODA DE DALI

Ah, como foi fácil abrir os olhos, ficar de joelhos e estalar artelhos dentro da redoma. Quis um cafuné despido de razão para comer com pão no café da manhã. Mas não estava são, como nunca estarei. Apenas maldizia em compasso de espera.
A cara metade a léguas daqui. A cara metida em downloads de lá. Entra o descanso de tela, despluga o fio de raciocínio que coitadinho se insinua a vir a ser alguma coisa. Vou escrevendo sem mãos a medir nem pés a amparar, mesmo sabendo que nada restará que se aproveite, exceto o jasmim exalado de uma ou outra consoante. Branca, linda, sem serifas que machuquem. Cai flutuando no texto e deixa-se ficar. Que nada, quimera, que sina, pintassilgos de resina nessa piscina de esperanto. Regrido pros idos da pedra lascada, desvãos, lodos e escaninhos por toda a inadequada geografia. Acesso de riso à entrada da estrada lacrada com pasta de amendoim e raspas de misericórdia. Mas de repente tudo passa a destoar de Dostoievski. Cubro com a mortalha o corpo da vida. Pois é, nem deu tempo de avisar todo mundo, mas o fato é que a vida acabou de morrer com um terno sorriso nos lábios. Incensa e chora, lamenta e geme que ela já era. Espana, gira em falso. Espanha, falsos Mirós. Vejo carradas de mouses de esgoto a farejarem rotos e a soltarem arrotos sobre outros ratos. Enquanto isso, há milhares de lousas à espera dos gizes e mulheres lusas ainda quentes, moídas por engano na bacalhoada. Uma soneca no vinco do teu jeans, sob o embalo cômodo de Brothers in Arms. Sem mais delongas, estimo melhoras.

Sunday, September 10, 2006

BABA-OVO

Não conhecia a expressão até outro dia. Já tinha ouvido muitas de suas variantes elencadas pelo Aurélio: bajulador, adulador, adulão, babão, cafofa, chaleira, incensador, lambedor, lambeta, lambeteiro, louvaminheiro, puxa-saco, sabujo, xereta, banhista, cheira-cheira, chupa-caldo, corta-jaca, engrossador, enxuga-gelo, escova-botas, incensador, xeleléu, lambedor, lambe-botas, lambe-esporas e mais um outro sinônimo realmente impronunciável.

Mas baba-ovo pra mim é novo. Não o sujeito, mas o predicado. Aliás, alguém poderia me dizer por que baba-ovo se chama baba-ovo e por que puxa-saco se chama puxa-saco?

Questões semânticas à parte, é preciso reconhecer que o baba-ovo legítimo, aquele que honra a classe, geralmente não é o que se poderia chamar de um cara ambicioso. Sua pretensão é ter o seu lugarzinho ao sol e tudo bem. Não chega a ser arrivista e também não é necessariamente mau-caráter. É ardiloso de nascença e por força das circunstâncias, mas seria uma injustiça chamá-lo de canalha. Falta a ele coragem para a vilania.

Como tudo que é rasteiro e ordinário, os baba-ovos pululam à nossa volta, é raça que se dissemina em estonteante velocidade. Agora mesmo tem um baba-ovinho nascendo. Tão baba-ovo que, se dependesse dele, ao invés de chorar na hora do parto daria um tapinha nas costas do médico. Sabe como é, nunca se sabe quando é que se vai precisar das pessoas...

Uma vez baba-ovo, sempre baba-ovo. Começa com a maçã lustrosa na mesa do professor e termina com o discurso, aos prantos, na cerimônia comemorativa aos 75 anos do Diretor-Presidente. E nessas e outras pequenas coisinhas, lá vai ele se segurando no staf e amealhando pontinhos.

O baba-ovo não é o político. É o assessor dele. Seu negócio é mais superficialzinho, não engendra grandes estratagemas e não age em quadrilha. É improvável que um puxa-saco entre em conluio com quem quer que seja pra obter alguma coisa. O baba-ovo de verdade é egoísta, quer fazer ele mesmo e não gosta de dividir o mérito, se é que se pode chamar de mérito o produto de sua desfaçatez.

Ser o escudeiro é tudo o que basta ao abnegado puxa-saco. Ele se compraz tendo o imediato superior a reverenciar. A seara dele é o bastidor, a adulação estudada e cheia de intenções adjacentes. O barato do baba-ovo é a própria vassalagem, curvar a espinha é o seu orgasmo. Fica sabonetando e estendendo o tapete por instinto e vocação mesmo. Definitivamente ele gosta da coisa.

O mais engraçado no baba-ovo é a sua inaptidão em disfarçar a babaovice. Se acha um expert em dissimulação, tem certeza de que ninguém está percebendo seus expedientes. Não imagina o quanto sua pretensa sutileza é ostensiva, o quanto é alvo de chacota nas rodinhas de conversa e nas mesas de bar. Enfim, o torpezinho mal sabe a que ponto sua fama é estabelecida na praça. E vai ficando sem saber, já que falta peito aos colegas para alertar o indivíduo. Já pensou chegar pro enxuga-gelo e dizer – “Ô meu, manera na puxa-saquice que tá dando na vista”? Não dá. É algo parecido com aquela história de avisar o sujeito que ele tem mau-hálito. Todo mundo sabe que é uma boa ação, até um gesto de caridade, mas ninguém se aventura a ser tão sincero.

Nas reuniões, sua perfeita concordância com as opiniões do chefe é tão automática e previsível que não choca mais ninguém. Mas aí acontece um imprevisto: o baba-ovo é surpreendido por uma inesperada promoção e passa a ser sub-chefe de qualquer coisa. Consequentemente, terá por sua vez, se não um arsenal, pelo menos um neo baba-ovo mais do que disposto a lamber-lhe as polainas. A pergunta é: será que ele, alçado agora ao posto de “adulável”, vai perceber?

Sunday, September 03, 2006

O NÃO SER

Eu sei que foi mais ou menos desse jeito, querendo jogar uma água sanitária no mofo de mim mesmo, que saí pra rua sem rumo nenhum. Pensando em não pensar em nada, só ouvindo um ou outro estalinho de graveto no caminho e deduzindo: isso é um estalinho de graveto no caminho e pronto.

Eu sei que a intenção era boa e honestamente me empenhei, mas ao primeiro graveto estalado me chega sorrateiro o chato interrogativo e suas vãs divagações. E me fala do abismo entre a finitude do ser e a infinitude do tempo/espaço, diz que é da natureza humana colocar termo, ordem e dimensão a tudo. Argumenta sobre a urgência e a necessidade de haver cabimento, pois tudo há de “caber” na fôrma do que é lógico, compreensível e demonstrável.

Eu sei do desalento nesse ponto de vista agnóstico. Considerando-se que a vida seja mesmo uma só, só essa que a gente tá vivendo e olhe lá, ela é um ridículo intervalo entre a eternidade que passamos não sendo e a eternidade vindoura onde continuaremos a não ser. Ao invés de seres, na verdade somos “não seres”, a não ser por algumas décadas. E tem gente que não aproveita essa rara exceção que o caos nos abre. Pior: há os que se matam, voltando prematuramente ao nada. É muito desapego, é quase fazer troça com o acaso ou com o Todo Poderoso.

Eu sei o quanto é difícil imaginar o que quer que seja sem um começo. Você saber que o tempo vai prosseguir indefinidamente a partir de agora, ainda vá lá. Mas você aceitar o infinito de tempo que houve antes de agora, fica bem mais complicado. Algo sem fim é algo mais fácil de conceber que algo sem começo. Uma coisa é começar do zero, como todas as coisas aparentemente começam. Outra é não ter zero. Como é que pode?

Eu sei que querer achar a combinação desse cofre é megalomania. Nossa cachola mede alguns centímetros quadrados e não seria razoável que abrigasse, em tão reduzido espaço, a explicação do universo. Enquanto isso astrônomos se debatem, fazem votação e agendam simpósios internacionais para deliberarem, soberanamente, se Plutão continua planeta ou se é rebaixado a aspirante. Como se isso diminuísse o peso das interrogações que há milênios levamos às costas.

Eu sei que entrei na primeira igreja que me apareceu na frente. Um grupo de oração seguia desfiando seu rosário. Beatas de véu, homens de terno, como que prontos para uma festa do divino. Rezei uma Ave-Maria e um Pai-Nosso, rogando a todos os santos que me tirassem da aflição inútil, pelamordeDeus. Com o perdão dos céticos, que às vezes perdem a razão pelo excesso dela, eu quero é nuvenzinhas, tronos celestiais, trombetas de serafins, mantos diáfanos. E faço questão que a autenticidade do Santo Sudário seja confirmada pela ciência. Que divina delícia esse conforto das abóbadas repletas de anjos gordinhos com cabelos encaracolados, os ecos de uns poucos sapatos na catedral vazia, às duas da tarde de uma segunda-feira. Ou os ofícios dos domingos, os estandartes, cálices bentos e andores das procissões, os tapetes de serragem e palha de arroz tingidos de anilina para o Corpus Christi. O céu e o inferno, Adão e Eva, o bem e o mal. Quero o padre de aldeia, que vem dar comunhão em casa e acaba ficando para o frango com polenta.

Sunday, August 27, 2006

JUNTE-SE A NÓS!

Chega de candidatos de ocasião, que dão as caras agora e que, findo o pleito, escafedem-se como ninjas em filmes de kung fu. Basta de aproveitadores com sua verborragia inflamada e estéril. Cheios de programas vazios, esses embusteiros se apresentam no vídeo com a mão espalmada, apregoando as cinco manjadas prioridades de governo: saúde, habitação, emprego, transporte e segurança. Quero fazer frente a esse engodo que caçoa da boa-fé do eleitor, e para tanto apresento propostas concretas.

Darei combate sem trégua àqueles que são contrários ao nepotismo saudável e desinteresseiro, ao cartorialismo firme e atuante, à legítima barganha de cargos públicos em todos os escalões, ao voto de cabresto a peso de mortadela e ao assistencialismo de fachada.

Atendendo a uma antiga reivindicação da sociedade organizada, azeitarei a máquina administrativa para que funcione a contento. Confiante em minha vitória nas eleições que se avizinham, já deliberei à minha futura equipe de assessores uma tomada de preços para importação do óleo de oliva da marca Gallo (com o perdão do cacófato), extra virgem, em caixas contendo 120 latas de 500 ml. Havendo excedente, o azeite será utilizado para regar as pizzas de minha legislatura, que sem dúvida serão muitas e de sortidos recheios.

O eleitorado da terceira idade terá acesso a um novo modelo de prótese, composto por arcadas lisas e inteiriças, ou seja, sem as repartições a que chamamos “dentes”. Uma peça é afixada no maxilar superior e outra no maxilar inferior. O efeito estético é avassalador, assemelhando-se ao que se vê na maioria dos personagens de desenhos animados. Além de facilitar sobremaneira a higiene bucal do idoso, essa revolução protética dispensa o uso de fio dental, desonerando assim os cofres públicos da compra deste item para os asilos. A fôrma do novo artefato já está pronta e o produto chegará aos postos de saúde em 3 tamanhos, dependendo da dimensão da boca do ancião: boca pequena (para velhinhos fofoqueiros), média e extra grande, comercialmente chamada de “Lobo Mau” ou “Cicarelli”.

Implantação do “Halloween Tupiniquim” no calendário de festividades, com o objetivo de manter vivas nossas mais ricas tradições folclóricas. Com ele, diremos não ao imperialismo americano e suas bruxinhas babacas, marshmellows de variadas cores e cabeças de abóbora iluminadas. Os monstros ianques darão lugar ao Boi da Cara Preta, ao Saci, à Cuca, ao Boitatá e ao Chupa-Cabra. A gurizada, por sua vez, passará pelas casas à cata de doces típicos da nossa culinária, como o quebra-queixo, a pamonha e o pé-de-moleque.

Incentivos fiscais para pequenas produtores de mandruvá em cativeiro, projeto que acalento desde os tempos de vereança. Devo lembrar aos eleitores que a indolente lagarta, abundante em nossa região, tem eficácia comprovada na erradicação do escorbuto e de outras hipovitaminoses que assolam as populações desassistidas, especialmente as comunidades ribeirinhas.

Programa “Espana, Brasil!”, que prevê a produção de espanadores com pena de codorninha do mato. Toda a produção será escoada para acabar com o pó de países vizinhos, como a Bolívia e a Colômbia.

Se suas aspirações encontram eco em nossa plataforma de governo, junte-se a nós. Empunhe nossa bandeira, leve no peito nosso botom, convença seu vizinho ou colega de trabalho de que a nossa causa é a causa de todos. À vitória, companheiros!

Observação do autor: esta é uma obra de ficção. Ou não... decida com seu voto.

Wednesday, August 23, 2006

DOMINGO DE 71

No ar, Flávio Cavalcanti.

Ele era da época. Do Flávio da primeira temporada, aquele da TV Tupi e em preto e branco, transmitido ao vivo no domingo à noite e com a Márcia de Windsor, o Erlon Chaves e o Sérgio Bittencourt no júri. Sentado na espreguiçadeira, assistia ao programa tomando Coca-Cola e comendo sanduíche de pão Pullman (pão de forma só tinha o Pullman) com patê Bordon e salsichas do Frigor Eder. Pra comprar a Coca precisava levar o vasilhame, que alguns chamavam de casco. O empório vendia banha por quilo, azeitona a granel, galocha, fluido de isqueiro e tinha uma Filizola, daquelas de regular o peso manualmente. Ficava a duas quadras de casa – a velha casa de grade baixinha e Coroas-de-Cristo no jardim. Mas mesmo assim ia de carro quando precisava de alguma coisa, um Opala último tipo, branco e de capota preta, com alavanca de câmbio na direção.

Precisava dormir mais cedo, ficou de segunda-época e nem havia decidido ainda se ia prestar Cecem, Cecea ou Mapofei quando terminasse o Científico. Na véspera, a brincadeira dançante. Abafou com o plataforma novo e a calça Far-West. Cuba libre e hi-fi a rodo, os pais da Ju tinham viajado pro litoral. Uma hippie bonitinha, com uma bata de anarruga, dando bola para ele a noite toda. Lá pelas tantas, o vizinho chamou o guarda-noturno que acionou a rádio-patrulha porque a vitrola estava com o volume muito alto.

Nossos comerciais, por favor. Ele estala os dedos e a câmera dá um zoom na mão.
O Flávio de smoking em seu púlpito, pondo e tirando os óculos de armação grossa, num cacoete irritante. Igual ao outro cara do júri, o tal do Clécius Ribeiro. Dizendo o que presta e o que não presta, com o dedo em riste, quebrando disco do Caetano e jogando no lixo, criando suspense, fazendo caras e bocas, promovendo a moral e os bons costumes, entrevistando viajantes de discos voadores.

Mamãe entra na sala.
- Esse maldito pequinês me arranha todo o sinteko. Vou ter que passar a enceradeira de novo. O cabelo armado de laquê e as anáguas à mostra enquanto se curva para recolher as bitucas de Minister do cinzeiro de cristal. Vai pra cozinha e volta pra pegar o prato com os farelos de pão e o copo vazio, enquanto o cuco anuncia 9 horas.

- Ai que horror esse homem metendo medo na gente. Deviam colocar novela no lugar dele. Domingo também podia ser dia de novela – ela dizia, arrumando o chumaço de bom-bril na antena da TV. Volta pra cozinha.

Tem comercial demais. Flávio é líder de audiência.
A pulguinha dançando iê-iê-iê, o pernilongo mordendo o meu nenê. Varig, Varig, Varig. Cinta modeladora Esbelt. Mappin, abre às oito, Mappin. Groselha vitaminada Milani, é uma delícia no lanche...

Um fusca tala larga, amarelo-gema, passa cantando pneu. Nessa velocidade, vai se arrebentar quando passar na tartaruga ou parar no sinaleiro.

Papai deixou o monóculo com a lembrança da viagem a Araxá em cima da lata de Duchen recheada de morango. O pequinês vem chegando, barulho das patinhas no assoalho do apartamento. Tomou banho hoje, cheira a talco e creolina.

Voltamos a apresentar... Flávio Cavalcanti.

Sunday, August 13, 2006

FESTA DE INTEGRAÇÃO CRIANÇA-EMPRESA

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Ref: Festa de Integração Criança-Empresa

Senhores,
Com relação ao assunto supra-citado, é imperioso frisar que temos apenas 3 meses e 22 dias para definirmos um plano estratégico de ações. Pela complexidade do tema, estamos correndo contra o tempo. Sugiro uma reunião de nossas diretorias para que possamos estabelecer metas conjuntas e criarmos uma comissão executiva, cuja incumbência envolverá os múltiplos aspectos a serem providenciados – do perfil psico-social do homem do algodão doce aos testes de elasticidade e resistência das bexigas.

De: Coordenadoria de Assuntos Sociais
Para: Diretoria de Recursos Humanos

Perfeitamente, senhor Diretor. Como start do projeto, já temos um croqui enviado por nossa agência de eventos, para ambientação do salão de festas. A nosso ver, é imprescindível uma correção na quantidade de purpurina nas sobrancelhas da Pequena Sereia. No processo licitatório o fornecedor escolhido foi a Purpur-Show, que deverá nos entregar a matéria-prima em tempo hábil para competente aprovação final. Caso contrário chamaremos em caráter de urgência a Mega Brilho Purpurinas – dessa vez sem licitação, por demonstrar notória competência e especialização naquilo que faz. Devo lembrar ao senhor que a Cinderela de isopor da festa de 1997 teve os olhos e o lábio inferior ornados por eles, e até hoje se comenta do furor causado pelo artefato entre os pequenos.

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Tivemos, na confraternização do ano passado, um sem número de reclamações de esposas de colaboradores, argumentando que nos recheios das coxinhas predominava a sobrecoxa, quando historicamente utilizamos o peito desossado. Alguns relatos dão conta de resquícios de moela, o que é ainda mais inadmissível. Fiquem atentos a isso, por obséquio.

De: Coordenadoria de Assuntos Sociais
Para: Diretoria de Recursos Humanos

Informamos que o responsável pelas coxinhas com frango de segunda está devidamente frito. Ainda para conhecimento dos envolvidos, encaminho a síntese da apresentação em power-point do item 6, sub-item 9, que trata do recheio do bolo.

. Primeira camada: leite condensado com ameixa.
. Segunda camada: chantily com morango e cerejas ao licor.
. Terceira camada: massa folhada com creme amarelo do tipo bomba de padaria.
. Quarta camada: a ser definida após consenso entre as nossas diretorias, que nas últimas reuniões vêm divergindo a respeito da matéria. Para que não haja comprometimento do nosso follow-up, uma vez que estamos a apenas 1 mês e 29 dias para o fechamento do escopo estratégico de ações, e em permanecendo o impasse, sugiro que uma instância independente delibere sobre o assunto, sendo sua decisão soberana e irrecorrível.

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Deliberação do dia: garfinhos de madeira de 2 dentes X garfinhos de plástico de 3 dentes.
Fizemos a tomada de preços e constamos que o custo da primeira opção é significativamente menor que o da segunda. Contudo, é forçoso admitir que os garfinhos de dois dentes têm menor desempenho de contenção do bocado alimentar – estudos demonstram que há uma perda de bolo maior no trajeto compreendido entre o pratinho de festa e a boca do conviva. Além do desperdício de bolo em si, teremos ainda um maior acúmulo de resíduos gordurosos no chão, que ocasionarão escorregões e tombos, que significarão fraturas e arranhões, que trarão ônus para o ambulatório da empresa.

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de assuntos sociais

De fato. A Diretoria, com o aval da CIPA, delibera pela compra dos garfinhos de três dentes, do fornecedor Algazarra – Artigos para Festas Ltda. Contudo, há uma pendência a ser equacionada, já elencada na pauta da reunião de quinta próxima: o bexigão-surpresa, cujo estouro e conseqüente avalanche de miudezas infantis é o ponto alto da festa. Urge que a Coordenadoria de Assuntos Sociais saia a campo para uma pesquisa em profundidade junto ao público-alvo para sabermos se adquirimos ou não os mesmos produtos dos anos anteriores e respectivas marcas, a saber: chiclés de bola, balas de goma, cornetinhas, apitos, línguas de sogra, aneizinhos e ioiôs.

De: Coordenadoria para assuntos sociais
Para: Diretoria de Recursos Humanos

A pesquisa citada em seu último memo já está em andamento. Publicamos também um edital de concorrência para aquisição de talco antialérgico (10 latas de 1kg), a ser acrescentado junto aos demais brinquedinhos no enchimento do citado bexigão, para maior efeito cênico quando do seu estouro. Todos hão de recordar o caso do petiz de tenra idade, que numa das últimas edições da festa quase veio a óbito, por inalar talco não-antialérgico contido no bexigão da época.

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Ótimo, muito bem lembrado. A pró-atividade demonstrada por sua equipe sinaliza preparo para os desafios de um cenário econômico globalizado e de um mercado cada dia mais competitivo. Mas o profissionalismo está nos detalhes, e em dois deles os senhores pecaram:
1.
Há muito tempo as Marias-Moles não estão mais entre os sonhos de consumo de nosso público.

2.
Os guarda-chuvinhas de chocolate, marca Ploft, lote 153-06, não atendem às normas de segurança do INMETRO.

De: Coordenadoria de Assuntos Sociais
Para: Diretoria de Recursos Humanos

Tenham os senhores a certeza de que as mencionadas falhas serão sanadas. A seguir, as sugestões do nosso departamento para os presentes dos guris:

Filhos de operários: jogo do mico
Filhos de encarregados: resta-um, pega-vareta e dominó
Filhos de supervisores de produção: dama, xadrez, trilha e ludo
Filhos de chefes: bonecas que falam e carrinhos com rádio-controle
Filhos de gerentes: bicicletas e ursões de pelúcia
Filho do Diretor de Recursos Humanos: Playstation 3

De: Diretoria de Recursos Humanos
Para: Coordenadoria de Assuntos Sociais

Ok, aprovado. Podem solicitar os orçamentos para análise do Financeiro. Por último, porém não menos importante: o balão pula-pula. Sugiro que as bolas sejam confeccionadas com as cores do emblema da firma – verde e dourado. O que acham?

Saturday, August 05, 2006

QUEM QUISER QUE CONTE OUTRA

Num reino muito distante vivia Branca de Neve, que, já beirando os 50, entraria com uma denúncia no Procon ao constatar que não seria feliz para sempre coisíssima nenhuma, conforme prometera o estúdio de animação. Frustrada com o casamento, enganaria rotineiramente o príncipe sem maiores dramas de consciência, cada dia da semana com um anãozinho – mas sempre com camisinha. No caso, camisinhazinha.

O príncipe, ao cavalgar pelos arredores do reino enquanto era corneado, avistou um dia a casa de Prático, o mais esperto dos três porquinhos. Papo vai, papo vem e o futuro monarca convenceu o suíno a firmar sociedade com ele num frigorífico para produção de bacon sem colesterol e 0% de calorias. Mas Prático não foi esperto o suficiente para desconfiar que ele entraria com o bacon. Pensava que sua participação se restringiria à gestão estratégica do empreendimento, por conhecer a fundo o produto desde leitãozinho.

Emitido o atestado de óbito – e de burrice, o príncipe contrata o marceneiro Geppeto para fazer o caixão de Prático, cujo velório se realizaria após a missa de porco presente. Foi quando Pinóquio resolveu meter o nariz na história: “Meu faro diz que esse negócio de bacon light é muito promissor”, comentou ele com o napolitano vovozinho.

“Sou o sócio que todo empreendedor pediu ao Sebrae”, argumentou Pinóquio ao visitar o príncipe em sua fabriqueta de toucinho. “Se mentir ou tentar enganá-lo, meu nariz me denunciará”. Mais que convincente, o argumento era irresistível. Tinha à sua frente o sócio ideal: um sujeito compulsoriamente honesto!

Mas se associar empresarialmente ao príncipe não significava garantia de recursos fartos. A arrecadação de impostos no reino se resumia a umas poucas patacas, graças à inoperância da máquina administrativa. O jeito era arrumar um terceiro sócio – o capitalista. De imediato Pinóquio lembrou-se de Dona Baratinha, a que tem fita no cabelo mas jamais deixaria o dinheiro na caixinha: todos sabiam que aplicara tudo, incluindo o espólio de João Ratão, num fundo de investimento agressivo para ter lucro rápido e desbaratinar, pegando onda em Saquarema. (A título de curiosidade, João Ratão empanturrou-se até a morte com o bacon de Prático, um dos muitos pertences da substancial feijoada da Senhora Baratinha).

Ao ser consultado para aceitar a proposta, o famoso inseto da família dos blatídeos esquivou-se, alegando os planos de desbaratinamento acima citados e que já estava de malas prontas para a paradisíaca cidade fluminense. Mas indicou o Gato de Botas como parceiro no projeto, embora o felino tivesse sido um perseguidor implacável do seu amado João Ratão, nos porões de uma repartição pública.

Longe há muitos anos da burocracia estatal, o Gato de Botas andava agora de rabo preso ao jogo do bicho. Com as patas sobre a mesa do seu bunker e cofiando calmamente seus bigodes, recusou com polidez a oferta de Pinóquio e do príncipe: “O convite é tentador, mas não é zoológico abandonar nesse momento os meus negócios. Já falaram com o Shrek? Também ouvi dizer que a Cinderela, com aquela carinha de santa, tem cem mil contos de fada depositados na Suíça. Aposto que não sabiam disso, né. Um verdadeiro golpe de mestre...”

- Mestre... claro, o anão! Como não pensamos nele antes? Bem debaixo das minhas barbas! – retrucou o príncipe.

- E do meu nariz!, complementou Pinóquio. Com o trabalho nas minas, deve ter muito dinheiro guardado, o bastante para fazer do Diet Bacon um fenômeno nas gôndolas. Vamos já para o seu reino, príncipe.

Como a Lei de Murphy impera sempre, inclusive no mundo do faz-de-conta, aquele era o dia do Mestre dividir os lençóis com a insaciável Branca. Ou melhor, os maus lençóis: o príncipe e Pinóquio flagraram Branca de Neve no sofá, em sensuais preliminares com o Mestre, o Patinho Feio e a Bela Adormecida, que na ocasião parecia mais acordada que nunca.

Gritos, pancadas, tiros, golpes de espada, sangue derramado.

Até que chegou o soldadinho de chumbo, dando voz de prisão a todo mundo.

(continua qualquer dia desses)

Sunday, July 23, 2006

FILHO, UM DIA NADA DISSO SERÁ SEU

O retrato de Paolo era de 1885. O pintor assinava como “Vincenzo Ponti”, e havia sido pintado ainda na Itália, poucos anos antes do velho Paolo imigrar para o Brasil. Sentado numa confortável poltrona, tinha atrás de si uma lareira. Parecia estar trajando algo parecido com um fraque, de tom azulado escuro. Sua expressão não era nem alegre nem triste, nem confiante nem descrente. Apenas olhava placidamente para o pintor, esse tal Vincenzo Ponti que a história não legou à posteridade e de quem só se conhecia a assinatura. Nenhum verbete na Wikipedia ou ocorrência no Google.

A pintura veio para o Brasil junto com as duas malinhas surradas de Paolo e família, e anos depois passou a ornamentar a parede da casa de Luigi, o primogênito.
Correram as décadas, vieram as traças e os cupins na moldura. Melhor chamar um fotógrafo para tirar um retrato do retrato, a imagem de papai não pode se perder – pensou Luigi. Ainda bem que o retrato não se mexia, porque a exposição à câmera era demorada. Se fosse uma pessoa, teria que ficar imóvel por pelo menos 10 minutos. A fotografia retratando a pintura ficava numa mesinha de canto, próxima ao hall de entrada.

Trinta anos mais tarde, Felipe, que havia herdado a casa de Luigi, sacou sua Rolleiflex e prosseguiu com a brincadeira: tirou uma foto da foto da pintura junto à pintura real - a essa altura com a tela em frangalhos, as cores desbotadas e outra moldura no lugar da original.

1967. Com uma filmadora Super-8 na mão, Joaquim preparava a luz para fazer a tomada antes da demolição da casa. Filmou, num único e demorado plano, a foto que seu pai, Felipe, havia tirado da foto que Luigi mandara fazer do retrato de Paolo.

Chegou a vez do Rodrigo, filho do Joaquim, prosseguir com a tradição. Passou para uma fita de vídeo a filmagem em Super-8 feita pelo pai. Agora era um vídeo contendo o filme que mostrava a foto onde figurava outra foto que captou a pintura do falecidíssimo Paolo. Cinco gerações, cinco planos de registros sendo perpetuados.

Mas fita de vídeo oxida, estraga com o rebobinamento, perde qualidade a cada reprodução. Já o DVD, não. Dados digitais são eternos, como eternas tinham que ser as relíquias da família. Hora de passar a fita para a nova mídia.

Deu na televisão e nos suplementos de informática: o DVD, supostamente imune à ação do tempo, mostra sua fragilidade. Muitos estão se apagando, sem causa aparente. Rodrigo decide fazer cópias do DVD familiar para deixar ao pequeno Paolo, assim batizado em homenagem ao patriarca.

Fez 10 cópias. Para maior segurança, cada uma delas de um fabricante diferente. Três vão ficar com o jovem Paolo, que só irá reproduzi-las em ocasiões especiais para evitar manuseios constantes. Seis serão distribuídas para parentes que residam distantes uns dos outros (incêndios, inundações, terremotos ou assaltos podem acontecer, mas não simultaneamente em seis lugares diferentes, a menos que seja o fim do mundo). A última das dez cópias será acondicionada em uma caixa de isopor, sobre a qual haverá um revestimento de cortiça. Acima deste será providenciada uma camada de chumbo, que então será guarnecida por uma forração de madeira maciça fechada por cinco cadeados. A caixa multi-camadas será depositada, junto com as chaves dos cadeados, no cofre de um banco.

Tudo pronto. Dever cumprido, consciência tranqüila, perpetuação assegurada. Mas o sossego durou pouco: agora apareceu o Blu-Ray, nova mídia que irá aposentar definitivamente o DVD comum. E com um nível de confiabilidade de armazenamento nunca antes imaginado pelo homem. Muito menos pelo velho Paolo.

SEM COMENTÁRIOS

Li recentemente que 75.000 novos blogs são criados ao dia. O que significa dizer que, se até hoje você não tem um, amanhã provavelmente terá. Nem que seja só um álbum de fotos do batizado do seu pimpolho.

Mas se sobram blogs, faltam comentários. Pelo menos no meu. Após meses de postagens, o saldo de mensagens no meu sitiozinho virtual era desolador: um da minha irmã, um da minha sobrinha (ambos altamente suspeitos), um de colega de trabalho e um do meu querido Clóvis Vieira, jornalista de “O Município”.

Quando estes poucos comentários chegaram, deu aquele frio na barriga. Quem terá enviado? Será que é elogio ou alguém descendo o sarrafo?
Se fosse alguma coisa muito desabonadora, eu ia querer tirar. Mas aí seria censura. Estaria omitindo as talvez merecidas descomposturas para deixar só os afagos. Já pensou, atacar de editor de comentários? Seria muita trapaça.

Melhor então deixar sem a opção de comentar. E foi o que fiz. Entrei nas configurações do bichinho e desabilitei os palpites. Ótimo. Agora a porcaria do blog virou depósito de textos. Um contra-senso, já que a graça do blog é justamente a interatividade com o visitante. Mas fazer o quê, ninguém queria interagir comigo. O que era pra ser diálogo virou monólogo e estamos conversados. Quer dizer, não estamos.
Quem quer deixar um comentário deve achar antipática essa não-abertura à avaliação alheia. Mas tenho cá minhas razões, e a principal delas é que estava pegando mal. Onde é que já se viu um blog tão sem comentários assim?

Coisa mais frustrante ver aquele “0 comments” embaixo de dezenas de textos, cada um deles clamando por um comentarista de plantão!!!

Opinião mesmo, só de boca. Amigos e parentes dizendo que tinham acessado o blog e achado muito bonitinho, uma graça. Todos com a mesma história: “Olha, não deu tempo de ler tudo, mas os dois ou três textos que li já valeram a visita. Parabéns, continue firme”. Mas comentário por escrito, nada. Pô, uma linhazinha já estava bom. Um “oi”, um “passei por aqui e prometo voltar”, um “valeu” básico. A impressão que dava é que faltava disposição pra deixar lá o que quer que fosse. Outra explicação possível é que os comentários, uma vez postados, tornam-se públicos, tanto quanto o texto comentado. Muita gente pode acessar e ler, e o nosso comentarista de repente não quer deixar rastros...

Melhor sorte têm os ilustres, as celebridades que estão na blogosfera. O figurão postou o texto e meia hora depois já está até o pescoço de comentários, do Brasil inteiro. É que aí a coisa é diferente. Ter a oportunidade de deixar seu recado no blog de um famoso é status, quem ler pode achar que o palpiteiro é íntimo do autor. Na remota hipótese da mensagem ser uma raspança, o fã-clube do distinto instantaneamente se encarregará de lavrar um comentário-réplica, dando um “cala-boca” no desaforado.

Isto posto (ou seria postado?), vamos combinar o seguinte: fique à vontade pra percorrer as mal-traçadas do meu blog. Mas para louvações ou porradas, mande um e-mail. Prometo responder a todos. msguassabia@yahoo.com.br

Sunday, July 09, 2006

A RÚCULA E SUAS DESCONHECIDAS PROPRIEDADES

Parcela do IPVA, água, luz, telefone, escola.
Podia muito bem pagar por internet, caixa eletrônico, débito automático. Mas não confiava em nada disso, gostava mesmo da autenticação mecânica. Ali, preto no branco. Vai que amanhã dá pau geral no sistema, como provar que tá pago?

Pra falar a verdade, nem queria que a fila andasse. Tinha hora no dentista daí a 40 minutos. E sair de um suplício para outro era demais. Um sacrifício pede recompensa, e não mais sacrifício. Boca aberta ao torturante motorzinho, boquiaberto com o buraco no orçamento. Não, não. Ligaria pro consultório, desmarcando.

O saco sem fundo de trabalhar pra ganhar, ganhar pra pagar as contas, pagar as contas pra continuar na estatística dos economicamente ativos. E assim sucessivamente – do mesmo jeito será com seu filho e destino igual terá seu neto, se até lá esse mundinho não explodir numa hecatombe.

Ontem tinha ido almoçar com a Débora. Como sabia esnobá-lo, a cachorra. Ô Débora desalmada. Deixa estar que ainda me vingo, ele pensou. E a vingança veio a cavalo, naquele safado PF de padaria. Arroz, feijão, batata souté, salada de tomate e... rúcula.

Sentados à mesa, ela aciona o seu mais radiante sorriso em direção ao carinha da mesa ao lado. Foi quando se deu o desastre: aquele tiquinho de rúcula entre os alvíssimos incisivos. Quanto mais metida e insinuante a darling se mostrava, mais a verdura tornava bizarra aquela diva de subúrbio. Era nojento, constrangedor, hilariante. E a Deborazinha se achando.
Ele regozijava-se intimamente com aqueles míseros milímetros quadrados de rúcula, cujo poder de destruição ecoava por toda a Panificadora Doce Mel.

Contou: 28 à sua frente, sendo 7 office-boys. Aquelas caras de segunda-feira, mesmo sendo uma quinta que anuncia a sexta que traria o redentor fim de semana.

Se estudasse direitinho não estaria ali e não seria o que era. Esse ser de cera, dez horas por dia com o traseiro soldado a uma poltrona de escritório sem apoio para os braços. Essa previdente figura que não sai de casa sem guarda-chuva e talões de zona azul.

A cordinha de nylon a balizar a fila. Em todas as filas, de todos os bancos, a mesma cordinha e o mesmo dim-dom anunciando o caixa livre. Um passo à frente.

Olhou para o cartaz, na parede próxima ao subgerente. Um casal, dois filhos e um cão de guarda simpático, todos transbordando de felicidade graças ao seguro de vida que, além de cobrir morte, invalidez permanente e renda cessante, ainda oferece sorteios mensais de casas, carros e notebooks com processador Pentium 4 e monitor de cristal líquido.

De novo a imagem da Débora, com sua carruagem transformada em abóbora ao meio-dia. Foi-se o encanto, seu sapatinho de cristal virou pantufa de palhaço. A Débora a quem a rúcula tornou ridícula.

Dim-dom. Chegou sua vez.
Olha no crachá da moça: outra Débora. Ela diz “pois não” sorrindo. E sem rúcula nos dentes.

Sunday, July 02, 2006

O DEDÉ

Foi revendo “Forrest Gump” que lembrei do Dedé, o sumido porém inesquecível Dedé. Estava ao seu lado no cinema, na época do lançamento do filme, quando num rompante inspiradíssimo ele lavrou a versão tupiniquim da filosofia do anti-herói americano: “A vida é como uma empadinha de rodoviária: a gente nunca sabe o que vai encontrar”.

Nada do que o Dedé dissesse era levado a sério. Por mais sérios que fossem seus enunciados e máximas.
Consta que foi por volta de 1978 que o Dedé cismou que o tempo estava passando mais rápido. Alardeava aos quatro ventos a singular constatação, dispunha-se a chamar a comunidade científica pra comprovar por A+B a sua tese. Tinha toda uma teoria, amparada por equações complicadíssimas, cálculos quânticos e dízimas periódicas. Porém, mais rápido ou não, o tempo passou e a coisa ficou por isso mesmo.

Uma figura, o Dedé. Pelo seu jeitão aloprado, muitos o chamavam de Lelé. Que maldade.
Líder nato, amava palavras de ordem e gritos de guerra. Adivinha, no colégio, quem era o presidente do grêmio, o chefe da fanfarra, o representante de classe, o orador da turma? Lógico, o Dedé. Na faculdade, estampava e vendia nos intervalos das aulas camisetas do Che, da plantinha de Cannabis e contra o imperialismo ianque.

Se havia alguém perito em arrumar uma confusão, esse alguém era o Dedé. Sem querer, espalhava boatos e insultos difamantes, semeando a discórdia por onde passasse. Aprontava todas e, quando o tempo fechava, escafedia-se em meio à turba se estapeando. O Dedé sumia com a leveza e a rapidez de um ninja. Aquele monte de amigos batendo e apanhando por causa dele, e ele lá, rindo e guardando distância segura do qüiproquó.

O Dedé era também um diletante gastronômico, e suas panelas assistiam às combinações mais esdrúxulas – macarrão doce, sorvete de queijo com cobertura de azeite de oliva e polvilhado com orégano, pato ao molho de fanta uva.

São muitas as recordações. Devia ter umas duas semanas de casado, praticamente ainda em lua de mel, e quem me aparece em casa, de mala e cuia? Adivinhou de novo, leitor: o Dedé. Disse que ia ficar só uns dias. E uns dias, para o Dedé, eram muitos. Mais exatamente, 94.
Assaltava a geladeira sem cerimônia nenhuma, esparramava-se no sofá da sala para ver televisão e urinava com a porta do banheiro aberta.

O ecletismo era sua marca registrada no âmbito profissional. Chegou a gerenciar simultaneamente um bingo para a terceira idade, um serviço de telemensagem e um quiosque de tapioca.

Há cerca de dois anos, aconteceu aquela que seria a grande guinada de sua vida. Com a pompa que a circunstância exigia, abriu as portas do “Hair Fashion by Dedé”. Portas que foram fechadas antes mesmo da tesoura de cabeleireiro cortar a fita inaugural, por não ter sido expedido o alvará da prefeitura. Nunca testemunhei tão retumbante fracasso. Mais de 150 convivas, entre autoridades, convidados e representantes da imprensa local, degustando sidra vagabunda e assistindo o fiscal lacrar o natimorto salão de beleza.

O sucesso do Dedé com as mulheres era inversamente proporcional à sua desenvoltura como empreendedor. Tinha todas as que punha em sua alça de mira. Incluindo a filha de um promotor de justiça, com a qual chegou a noivar e a quem dedicou uma canção de relativo sucesso na época, finalista de um festival em Santa Rita do Passa Quatro e terceiro lugar num outro em Ijuí.
Não obstante essas heróicas conquistas, o pai da moça se opunha ao relacionamento, subestimando seus feitos e julgando-o indigno da filha.
Afrontado e ávido por um revide, Dedé foi à luta e um mês mais tarde esfregou na cara do promotor uma medalhinha de menção honrosa no 12º PIC - Piraporinha in Concert, e o cheque de R$ 75,00 a que fez jus.

Convertido a uma seita pentecostal, passou a levar uma vida regrada e produzia, em sociedade com um cunhado, pesos de porta com grandes figuras bíblicas, como Maomé, Isaac e Matuzalém. Mas foi à bancarrota ao ter um contêiner de Isaacs devolvidos. O comprador alegou que os Isaaquinhos rechados de areia trajavam suspensórios, artefatos que ainda não estavam em voga naqueles idos distantes.

Assim era o Dedé. Esse ser que não existe.

Sunday, June 18, 2006

OUT DO ORKUT

O nome "Orkut" pra mim remetia a nave russa, fria, orbitando no ciberespaço. Até que sábado passado resolvi me embrenhar, timidamente, por esse cipoal de relacionamentos. E vi que de frio o orkut não tem nada. O orkut é quente. O orkut pega fogo.

Entrei com o login da minha filha, pois ninguém me convidou pra ser um orkutiano (nem ela!). Claro, o que um tiozinho – no caso, um paizinho - vai estar fazendo por lá?

Comecei a procurar amigos de infância e de adolescência, hoje todos na casa dos 40. E percebi que eles estão no orkut, sim, mas como eu: não como membros. Os membros são seus filhos, e meus amigos aparecem como pano de fundo em fotos de festas de aniversário, férias, formaturas. Isso quando aparecem, já que muitas vezes são eles quem batem as fotos...

Evidente que o orkut não é um lugar só de teens. Meu tio Jairo tem quase 80 e está lá. Se há alguém que dá bola pra ele, já é uma outra história. Mas jogou sua garrafinha naquele mar, como que dizendo "não estou por fora disso, não".

Na São João do Tio Jairo, todo o cosmo cabia na pracinha da cidade. O orkut da época conectava gente em carne e osso, com hora marcada para os encontros: domingo, depois da missa. O on line era tête-à-tête, olhando nos olhos, sentindo o perfume e o hálito, sussurrando ao ouvido.

Tudo muito mais humano, mas também mais limitado. O sujeito crescia com aquela meia duzia de amigos e depois do "colegial" ia pra cidade grande fazer faculdade. Voltava uns anos depois pra terrinha, decidido a montar clínica, comércio ou escritório. Pra mais tarde casar, procriar e trabalhar com afinco para dar o melhor aos seus meninos.

Com o orkut, as possibilidades de conhecer novas pessoas se multiplicam em progressão geométrica, ainda que essas pessoas se façam ciberpresentes maquiadas pelo photoshop e se definam invariavelmente como inteligentes, bonitas, carinhosas, compreensivas e extrovertidas.

Mesmo que não busque exatamente informação, um jovem no orkut é um ser antenado, sabe o que se passa à sua volta. Diferente de mim, que só vim a saber que havia uma ditadura em curso aos 19 anos, na Universidade (nasci em 64, uma semana antes da "gloriosa"). Como ninguém falava abertamente nisso, o anti-estado de direito parecia, aos mais jovens, a ordem natural das coisas. Sou da geração Coca-Cola, a perdida, sem bandeira ou ideologia. Filho dos anos de chumbo, usava crachazinho verde e amarelo na Semana da Pátria. Os militares eram presidentes porque os presidentes eram naturalmente militares. E pronto.

Sorte dos novos, que com o orkut e outros bichos estão a salvo dos embustes que eu e meus amigos quarentões tivemos de engolir.

Viva o orkut. Ainda que viver seja estar no mundo em forma de pixels e bites.

Saturday, June 17, 2006

MINHAS FÉRIAS NA FAZENDA DO VOVÔ

Quando cheguei o notebook tava com a bateria fraca, vim jogando Fifa Soccer na viagem. Foi um trampo pra achar, na casa do vô, uma tomada que encaixasse no carregador.

Meu quarto era maneiro. Chapei com o visu da janela. Mas um pentelho de um ganso não parava quieto, e eu tinha que deixar tudo fechado pra não ouvir a barulheira dele.

O rango era estranho. Galinha ao molho pardo, polenta, pururuca, vaca atolada. Ainda bem que minha mãe me forrou a mochila com Doritos e Toddynho. Não ia comer aqueles bagulhos esquisitos nem a pau.

Um dia bateu uma larica forte. Pedi pro vô o telefone de um disk-pizza, tava a fim de traçar uma redonda com tudo o que tinha direito. O vô disse que pizza por ali só no forno da fazenda. Mas a lenha precisava cortar e mussarela não tinha, só queijo fresco e coalhada. Ferrou legal.

Minha vó ficava socando a porta do quarto, falando pra ir ver tirar leite de vaca, regar horta, matar porco, colher goiaba.

Uma galerinha, filhos do caseiro, ficava de longe olhando pra mim. Depois vinham com uns papos mó estranho, não entendia nada o que eles diziam. Umas coisas tipo tuia, cafezá, carpi, prumódi, arquere. Bailei bonito. O tempo todo os meninos ficavam me vendo tc. Na boa, me senti no Big Brother.

Jogava counter strike de manhã, até a hora do almoço. Ficava destruído e mandava ver umas Pringles. Só tinha um pacote, e ficava racionando. Também tinha de reserva um chocolate Hershey’s. Comia um pedacinho por dia, quando acabasse ia ter que encarar rapadura.

À tarde entrava no msn e fikava um tempão com a galera que tava on. Blz,mas aí a máquina travou geral. Falei com o vô, mas o véio nem tava ligado, mó sem noção. Tive que me virar sozinho. Foram 4 dias editando os configs do sistema, reinicializando a cada 10 minutos. Nunca fiquei tanto tempo off. Mas no fim consegui.

Uma vez apareceu na fazenda um tiozinho falando de arroba. Arroba do boi, arroba do algodão. Esse aí manja de computer, pensei, deve estar falando de algum site. Mas quando mostrei o notebook pra ele, ele falou: "Nossa, que televisão fininha!". Aí desencanei. Outro sem noção.

Daí pra frente foi maneiro D+. O programa não travou mais, conheci um monte de gente nova e uma mina búlgara, mucho loka.

Quinta-feira passada um peão daqui apareceu com duas varinhas de bambu, me convidando pra ir pescar. Nem fui, nada a ver, coisa de véio seqüelado ficar lá com varinha na beira do rio. O cara surtou quando eu falei em molinete. Nem se tocava que existia.

Naquele dia eu tava com meu jeans e ele perguntou se eu tinha caído de um touro brabo, porque eu estava "cascarça rasgada no jueio e carecia pinchá". Não sabia o que era "pinchá". Entrei no Google, mas não rolou nenhuma ocorrência.

Na hora de vazar pra ksa, tava com meu iPod. Aí um dos carinhas da roça mandou essa: "Xavê esse radim di pi". Depois de um mês, já entendia um pouco aquele idioma. Deixei com ele. Ano que vem eu volto pra buscar.

Sunday, June 11, 2006

O FRIO DE FORA E O DE DENTRO


Que coisa mais chata amanhecer no domingo com chuva e frio fustigando a janela. Um dia desse jeito é meio perdido, mal resolvido e defeituoso, meteorológica e produtivamente falando. O que influi no meu humor. Melhor dizendo, no mau humor.

Tem quem goste, achando que dias assim convidam à introspecção, balanço da vida, essas coisas. Outros se sentem mais dispostos para o trabalho. Esse negócio de frio tem sim, seus poucos momentos compensadores. Quando se entra no banho quente ou debaixo das cobertas, é ótimo. Mas essas delícias fugazes não pagam as penas posteriores - de sair do banho tiritando, de pular da cama de má vontade e de espaçar, muito compreensivelmente, as ocasiões para a prática daquela milenar e prazerosa modalidade.

Que suplício tratar de piscina, lavar louça, regar planta. No circo, por exemplo. O vento a 80 por hora arriando a lona. Imagine a agonia dos faquires, na gélida cama de pregos. A responsabilidade dos trapezistas e atiradores de faca, que têm de manter a precisão a despeito das mãos trêmulas. Igualmente torturante é o inverno para as strippers de boate e os entregadores de pizza.

E limpar gaiola de passarinho? Primeiro tem que lavar no tanque aquele fundo de zinco, cheio de caca. Empedernido pelo vento impiedoso, o dejeto só sai com palha de aço ou espátula. Pior é quando você roeu todas as unhas na véspera, deixando as cutículas em carne viva. Aí sim, é gostoso mesmo. Isso quando não se depara com o bichinho seco, as patas pra cima, mortinho da silva.

Gosto de tomar um uísque no fim de semana. Não mais que uma dose - cavalar, é verdade - o suficiente pra relaxar sem ficar xarope. E uísque sem gelo, não dá. É mais uma triste limitação do inverno, essa estação odiosa.

Tendo que renunciar ao meu trago domingueiro, comecei a fuçar nuns álbuns de fotos, do começo dos 90. Umas férias onde estou de passageiro num barco, passeando pela baía de Camamu. Olho as fotos e, claro, acesso o registro correspondente na cabeça, ele existe, está lá. Porém é tão frio quanto o dia lá fora. O fato sobrevive em linhas gerais, mas sem as sensações correspondentes. A foto não me traz de volta a brisa no rosto, o barulho do motor da embarcação, o azulado da água, o que sentia e pensava naquele instante.E assim acontece com outras coisas. Passo em frente de uma casa onde morei por cinco anos. E nada, só um flash nebuloso e em preto e branco vem à mente, condensando meia década de rotina diária num impreciso borrão de lembranças. Em seguida bate aquele paradoxo existencial - viver pra quê, se o que se vive agora será esquecido daqui a pouco? Você comenta com um amigo sobre isso e ele vem com a máxima, presente em 10 entre 10 manuais de auto-ajuda: "viva intensamente cada momento, como se fosse o último. Preste atenção ao presente, sem se agarrar ao passado ou se preocupar com o futuro. Assim você estará mais receptivo a reter o que acontece agora".
Pior ainda é constatar que a sua memória recente também é quase uma retardada - incapaz de lembrar do que você almoçou ou jantou ontem.

Livros às centenas, filmes aos milhares. Passo nas locadoras e não os reconheço, nem pela caixinha e nem pelo conteúdo. Para mim são eternos lançamentos. O lado bom é que, se pego um filme que já vi, não fico com a sensação de que joguei dinheiro fora. Olho para a estante de livros, leio os títulos nas lombadas, sei que um dia os devorei a todos. Atenta e silenciosamente, a cada um deles dediquei horas e mais horas, dias e mais dias. Pra chegar agora e não lembrar de nada - nem da história, nem do assunto, nem dos nomes dos personagens, nem de coisa nenhuma. Dizem os psicólogos e neurologistas que é o consciente que não lembra, e que o subconsciente guarda tudo em detalhes. E é aí, inclusive, que eles entram com suas ferramentas e terapias. Penso: é a idade. Errado: aos 14 já era assim. Chego a aventar a hipótese de distúrbio cognitivo. Herança genética? Talvez. Meu avô estacionava o carro e esquecia os vidros abertos, a chave no contato e - inacreditável - o motor ligado.

Mas por que é que eu vim parar aqui mesmo? Sei lá. Esse frio deixa a gente meio assim, de miolo duro.