Wednesday, December 21, 2005

ANACRÔNICA

Outro dia um colega de trabalho me mostrou um programinha que ele tinha acabado de baixar da internet: um simulador de barulho de máquina de escrever. Acionado o software, bastava ligar as caixinhas de som e, ao digitar no teclado, saíam ruídos que imitavam o tec-tec da dita cuja. Com o requinte de poder escolher entre vários modelos de máquina. Para cada modelo um som diferente, cópia fiel do original. O mais engraçado é que se ia escrevendo e, ao chegar o fim da linha, tinha aquele barulhão do carro da máquina voltando.

Retornei ao meu lugar e à época em que se datilografava ao invés de digitar. Tinha uns 12 ou 13 anos quando meu pai me matriculou num curso de datilografia da Escola Remington, do Seu Mario Sundfeld. Guardo até hoje o certificado de conclusão - passei com 9. Lembro direitinho do primeiro exercício, só com a mão esquerda: asdf asdf asdf – quatro ou cinco linhas da mesma seqüência, para o aluno memorizar a localização das teclas. Para boa conservação do equipamento, era bom passar o limpa-tipos de vez em quando - uma espécie de borrachinha que, pressionada como um chiclete nos tipos da máquina, ia tirando os resíduos de pó e de tinta que se acumulavam nas letras e tornavam os caracteres ilegíveis.

Quando a gente xxxxxxx errava alguma coisa no xxxx que estava escrevendo, ou resolvia substiutir uma xxxxxxxxxx palavra por outra, o texto ficava cheio de xxxxxxxx. Ou então se usava o corretivo, também chamado de branquinho, utilizado por muitos para fins bem menos nobres. Hoje, o processo de gestação do texto não deixa rastro. Os originais já nascem insípidos e imaculados. Tudo se deleta, se remove, se inverte, sem rabisco e rasura. É o fim do lixo cheio de papel amassado.

Uma máquina de escrever era o que se poderia chamar de “bem durável”, com direito a plaquinha de patrimônio. Objeto de ciúme e estimação, inspirava respeito. Era um monolito encravado na mesa do escritório. Muita gente ganhava uma na formatura do ginásio e ficava com ela até se aposentar. A pessoa, porque a máquina, nem pensar. Quanto mais se batucava mais a bichinha ia amaciando o teclado, ficando mais sensível ao toque e aos caprichos do dono. Tinha valor, atravessava gerações, ficava de herança. Já pensou hoje um computador ser arrolado em inventário? Por mais moderno que seja, daqui a uns meses não valerá mais nada – não suportará a versão 11.2 do Word, os novos recursos do Excel e a interface amigável do próximo Windows. Para que os programas continuem rodando satisfatoriamente, será preciso providenciar mais 4 pentes de memória, um processador mais potente, um hd de 100 gigas e 6 entradas USB. Aí o técnico em informática dirá a você que talvez seja melhor e mais em conta trocar de uma vez a CPU ao invés fazer as atualizações.

Em contrapartida, o que a minha boa e velha Hermes portátil me pede? Quando muito uma fitinha nova a cada dois anos. E olha que maus tratos é que não faltaram nesse tempo todo em que está comigo. Quanta migalha de bolacha e cinza de cigarro já deixei cair em cima dela. Poderia entornar uma ceia de Natal inteira sobre a coitada, com leitoa e tudo, que ela continuaria firme. Já o teclado do computador, se pingar uma gotinha de refrigerante, pode esquecer. Curto nos circuitos, falha geral de sistema, adeus aos dados não salvos.

Preço não é desculpa pra que você deixe de satisfazer esse excêntrico sonho de consumo. Por 100, 150 reais dá pra comprar uma maquininha bem razoável nas poucas oficinas de manutenção remanescentes. De quarta ou quinta mão, mas em perfeito estado de funcionamento - revisada e garantida. Mesmo que não seja pra usar, mas pra sentir o gostinho (ou o cheirinho) de ter uma. Sim, porque as máquinas de escrever têm um cheiro peculiar, de metal e óleo lubrificante. Todas cheiram assim. Exceto as que estão no ferro-velho.

NOTA: esta crônica foi gerada em ambiente Windows XP, no editor de texto Word 2003, salva em disco rígido, copiada em CD e finalmente passada a limpo numa Hermes Baby cor de abóbora, fabricada em 1979.

O RETORNO

Eram três e vinte. A consulta estava marcada para as quatro, e acho que pela primeira vez na vida comecei a reparar nos detalhes peculiares de uma sala de espera. Percebi que havia pouquíssimas diferenças entre aquela e todas as outras que já tinha entrado. Só variavam o endereço e a especialidade do médico ou do dentista.

Você chega e, antes de sentar-se, vai direto ao porta-revistas. Que nunca é um porta-revistas. Ou é um tacho de cobre ou uma cestinha de vime. Dentro, algumas "Veja" sem capa, publicações médicas, tablóides de ofertas do supermercado mais próximo e livrinhos de palavras cruzadas já resolvidas. Se for consultório de pediatra, costuma ter gibi também. E, claro, uma revista Nova bem velha. De 98, 99, por aí. Com uma mulher maravilhosa na capa, em superclose, enrugada como um maracujá de gaveta pelo amassado do papel. Iguais as que a gente encontra no cabeleireiro, mas sem as mechas de cabelo anônimo no meio. Fuçando mais um bocadinho você vai encontrar umas duas ou três Caras que já viraram Coroas, esfarelando e mais amareladas que os manuscritos do Mar Morto.

Geralmente, a revista que você pega é um pouco mais interessante que a do sujeito que está ao seu lado. É quando você percebe que são dois lendo a mesma matéria. O cara com o pescoço cada vez mais esticado para o seu colo. E você fica naquela, sem saber se vira ou não a página, se o vizinho já terminou ou não a leitura dele.

Não demora e chega o puxa-prosa. Aquele que diz “como vai?” e, antes que você responda, já vai logo contando como ele vai. Começa falando do tempo e em questão de segundos desembucha a ficha completa: de onde é, onde dói, a filha casada que mora em Mato Grosso, o filho metido com droga, o terreninho que ele comprou em Boiçucanga com a herança deixada por um tio-avô.

Algumas salas de espera têm aquário, com acarás-bandeira, peixes japoneses, paulistinhas e até cascudos. Sem som ambiente, fica só aquele glub-glub da bomba de ar, que é tiro e queda como sonífero. Quando estiver numa dessas, pode reparar: de cada dez, tem uns quatro dormindo. E ferrados no sono, com fio de baba escorrendo e tudo.

Existem tipos invariavelmente encontráveis em toda sala de espera que se preze: a mãe com um pestinha que não pára quieto (o pentelho quase sempre é acompanhante e não o paciente, pois demonstra uma saúde de ferro). O homem que fica olhando para a ponta do sapato, com o pensamento a léguas dali. O propagandista de laboratório, tamborilando com os dedos em sua pasta preta e consultando o relógio a cada dois minutos. Uma perua falando alto ao celular. A patricinha com seu "Diário de Bridget Jones", mascando chiclete e de calça Diesel.

A intimidade que você acaba tendo com a sala de espera é praticamente compulsória, pelo tempo a mais que você tem que ficar esperando. A consulta das 13h30 é, na verdade, às 14h45. O problema é que, se você não chega às 13h30, o paciente das 14h, que só vai ser atendido às 15h15, passa na sua frente. Ou seja, você está condenado a ficar ali contando não sei quantas vezes os ladrilhos do chão.

Uma voz feminina, com inflexão de locutora de aeroporto, me tira do devaneio:
- Sr. Marcelo... Sguas...
E enrosca no Sguassábia. Lógico.
- Primeira porta à direita. É retorno, senhor?
- Não. Mas é como se fosse.
- Ahn??

O DIA D

De deixar de engolir sapos pra dizer cobras e lagartos. De lagartear enquanto todos se danam de trabalhar. De danar-se para o que os outros achem ou possam pensar. De esticar o raciocínio até atingir a ignorância. De ignorar o radar e a multa, quando ela chegar. De chegar em casa e no chuveiro esvair-se ralo abaixo, sem parar. De parar de andar sentido com a vida e buscar um sentido pra ela. De dizer a ela, a ele, a elas e a eles que agora infelizmente não é possível. De possibilitar-se novas possibilidades, e ver que dá pé fazer o que jamais passou pela cabeça. De encabeçar o abaixo-assinado, indignar-se, chamar a imprensa. De imprimir sua marca na mais alta das encostas, onde poucos alcançaram e ninguém possa tirar. De tirar o relógio do pulso e ter pulso para mandar às favas o prazo estourado. De estourar a boca do balão, cair matando e partir pra briga. De brigar com a obrigação e fazer as pazes com a paz. De apaziguar a ansiedade, baixar a guarda e abrir os braços. De abraçar causas perdidas. De perder e dormir sobre os louros da derrota. De derrotar quem resolve o que pode e o que não pode. De poder e arbitrar, ir além da dose habitual, pichar um muro, dormir sem pijama, não trancar as portas nem regar as plantas. De plantar a semente da discórdia, botar a pulga atrás da orelha, acender o pavio, tapar os ouvidos e sair correndo. De correr algum risco, curtir o frio na barriga, ver a morte de perto, desatar os nós e desatar a rir. De soltar a risada reprimida, censurada à mesa, proibida nas igrejas e velórios, condenável na escola, nas audiências públicas e salas de concerto. De consertar o ânimo alquebrado, o tédio que enferruja, o sifão da pia e a dobradiça da janela. De erguer a vidraça e açoitar o mofo de idos tempos. De sentir saudade de sentir saudade. Ou, melhor ainda, de não sentir saudade por não saber do que se trata. De tratar de ser o que sonhava ser quando crescesse. De crescer sem conhecer a dor do fogo, a picada da cobra, os receios, arrependimentos e limitações incapacitantes. De ser capaz de entreter sem ser chato ou cansativo. De cansar do cansaço e demiti-lo, por justa causa e sem aviso prévio. De previamente ir deixando pra depois. De manter adiado até segunda ordem. De ordenar ao sargento pra não bater continência. De tornar continente seu pequeno povoado. De povoar de duendes e fadas madrinhas a fria terra dos gigantes. De agigantar-se e soar como o piano de Horowitz, a guitarra de Hendrix, o trompete de Armstrong num final de tarde. De assistir o entardecer sem pressa do sol se pôr. De pôr os pingos nos is, passar a limpo, tirar a teima e, tudo isso feito, jazer abandonado num sofá Chesterfield. De abandonar o cigarro por enjoar do vício, não porque é preciso. De não precisar mais cortar as unhas, fazer a barba, retornar ao dentista, atualizar o antivírus, pagar as contas e a promessa. De prometer a si mesmo que, daqui pra frente, nunca mais. De nunca mais guardar pra amanhã o último pedaço de chocolate, já que o amanhã pode muito bem cismar de não chegar. De chegar ao cúmulo, despertar a ira e provocar o espanto. De se espantar consigo e com quem quer que seja. De deixar de.

Tuesday, December 20, 2005

ALEATORIAMENTE

Falta de criatividade pode não significar ausência de dom ou talento para a coisa. Pode ser simplesmente desconhecimento de técnica. Às voltas diariamente com o dilema criativo, por questões profissionais, acabei caindo recentemente num site muito interessante sobre estratégias mentais.

Uma das técnicas apresentadas me chamou a atenção: a “random word”, também chamada de estímulo aleatório. Resumindo, a coisa consiste em juntar uma palavra relacionada com o problema a ser solucionado a outra escolhida absolutamente ao acaso. A partir daí, a idéia é anotar as associações produzidas por essa junção, gerando assim soluções e perspectivas novas. É como eles dizem lá no site: “o segredo é não ficar esperando a maçã cair, mas chacoalhar a macieira”.

Resolvi seguir o conselho. E cruzei “inspiração”, que era a minha angústia no momento, com a primeira palavra tirada a esmo do dicionário. Fechei os olhos, abri o Aurélio numa página qualquer, corri o dedo por ela e parei: “brotoeja”. Caramba, brotoeja... Tudo bem que a coisa toda é aleatória, mas não tinha nada melhor pra me aparecer, não?! O acaso poderia ter sido mais camarada.

Tentei de novo. Apareceu a palavra “empada”. Pra achar alguma liga entre empada e inspiração, seria preciso estar mesmo muito inspirado. E se fosse esse o caso, eu não estaria ali, botando em prática a tal da técnica...

Ainda assim fui em frente. Caí no termo “tubo”. Relacionando inspiração a tubo fui parar numa Unidade de Terapia Intensiva, com um paciente inspirando pelo tubo de oxigênio. Bom, mas e daí? Juntei isso à associação anterior e vislumbrei um início de história: um sujeito comeu uma empada estragada, que provocou uma reação alérgica em forma de brotoejas, que o levou ao hospital. Não, não. Sem chance de ir pra frente com isso. E pensei comigo mesmo: se a questão é estímulo aleatório, eu não precisaria necessariamente me prender ao dicionário. Pronto, achei em quem botar a culpa: os escassos estímulos do pai dos burros estavam tolhendo meu incomensurável potencial criativo. Bastava que eu olhasse à minha volta, ligasse a TV, fizesse uma caminhada e deixasse fluir os múltiplos cruzamentos que me passassem pela cabeça. Genial!!

Optei pela caminhada. Coloquei short e tênis e me pus em marcha acelerada, prestando atenção em tudo o que me aparecesse pela frente. Olhando para o asfalto, vi uma pequena rachadura. Esta me levou, por um paralelo megalômano, às fendas do Grand Canyon, que por associação geográfica me trouxeram à mente os famosos letreiros da palavra Hollywood, em Los Angeles. Daí foi um pulo pra me lembrar da marca de cigarros. Que trouxe à lembrança a querida vovó Chiquinha, que nos áureos tempos de fumante inveterada chegava a consumir dois maços de Hollywood por dia. Da vovó aos bombons de cereja Prink, que ela adorava e escondia dos netos no fundo do guarda-roupa. Do guarda-roupa ao Mistério de Irma Vap, onde o Marco Nanini e o Ney Latorraca trocavam de indumentária dezenas de vezes a cada apresentação. Do teatro à cortina, da cortina ao pano, do pano ao tear. Tear me lembrou Tears, lágrimas em inglês. Pára, pára, pára. Interrompi a caminhada e o raciocínio. Comparei a última idéia ao ponto de partida e não vi nada que se assemelhasse a um estalo redentor. Decidi voltar pra casa.

O fato é que, com essa história toda, cheguei até os quase 3000 caracteres que precisava pra completar minha coluna. E se você chegou até o fim deste texto, é sinal de que minha viagem pela aleatoriedade não foi totalmente em vão. Ou foi?

ELE É O CARA. AINDA.

Sinistro como aquele dia, só a fachada do Dakota - o paquiderme gótico que em nada lembrava você e suas roupas brancas pela paz. Gente do mundo todo aos prantos na frente da sua casa, teimando em não acreditar. Foi muita areia pros meus 16 anos, cara. Ainda que a milhares de quilômetros do epicentro, e só acompanhando pela televisão, sacudiu muito a estrutura. O Lucas Mendes ali, todo encapotado no Central Park, até ele parecia não encontrar nexo no que estava narrando.

Sempre que se falava em Beatles Forever, pra mim pelo menos era pra valer. Eu cresci confiando cegamente nessa promessa de imortalidade. E sem mais nem menos, aquela sacanagem. Minha mãe foi quem me deu a notícia, na manhã do day after. Sabia do meu fanatismo, me levou pra um canto, pediu pra que eu sentasse, que tinha uma notícia triste. Vinte e cinco anos depois, cara, você continua fazendo os lonely hearts baterem descompassados. Yeah, yeah, yeah. A respiração suspensa e um choro difícil de conter, não mais por causa da sua morte, mas por sentir você mais vivo que antes de ser assassinado. Você chamando Julia, pedindo Help, são coisas que a gente ainda escuta em estado de graça e com os pêlos todos eriçados. Os que já beiram os 60 – que viram você surgir, brilhar e partir – ou a garotada de 15, que só agora está ouvindo falar de você.

Fica à vontade, Mr. John. Nem preciso dizer que a casa é sua, olha só quantos discos seus. Acenda o tipo de cigarro que quiser, sirva-se do meu uísque, toque o meu piano. Só não fica tão ansioso, cruzando e descruzando as pernas o tempo todo. Relax, man. Pode se esticar no sofá, vou ligar para o delivery e pedir uns sushis.

Você afirmava que Deus era uma invenção, e é possível que você tenha dado de cara com o nada depois daqueles quatro tiros. Mas talvez o fato de não-ser valha mais a pena do que continuar por aqui, vendo tudo tão oposto ao que você imaginou. É, porque não deram chance à paz coisa nenhuma. Nunca estivemos tão longe dela. A despeito de você ter deixado a CIA com o pé atrás, o Nixon de cabelo em pé, o Elvis enciumado. Apesar de ter apontado o caminho pros filhos desorientados da guerra fria. Você, cara, teve peito de devolver a medalha pra Rainha. Deu uma banana pro show business e os managers das gravadoras pra ficar fazendo pão, lavando o chão e ninando o Sean. Que absurdo, o babá-beatle. Onde é que ele quer chegar, o que é que ele quer dizer? É, meu, você precisou ser muito homem pra virar dono de casa.

Como dizia uma de suas últimas letras, “a vida é o que acontece com você enquanto está ocupado fazendo outros planos”. E os nossos planos, cara, são ainda mais tolos e mesquinhos do que em 1980. Junto com o adeus a você, um caminhão de utopias rolou ribanceira abaixo. É frustrante ver hoje a sua figura desvinculada da sua história. Da sua verdadeira história. O que se vê é você reduzido a botons e pôsteres, desde as rodoviárias até as galerias de arte – o John de terninho e bota, o psicodélico, o hippie barbudo, o combativo, o pacifista. Mas da sua mensagem, que é o mais importante, muito pouco se fala. Ficam na superfície, no guru a quem se deve adoração sem que se saiba o porquê.

É irônico e entediante encontrar, por essa época do ano, seus CDs dentro daqueles trenós de papelão nos hipermercados, ao lado da gôndola de panetones. A mídia faturando em cima da aura messiânica criada em torno de você, fazendo girar a engrenagem que financia a guerra que você combatia. Transmitem especiais em sua homenagem, celebram com fingido pesar a sua morte, transformam você num papai noel magro, o som ambiente dos shoppings mandando ver o seu “Happy Christmas”. Eles não entenderam nada. Pior: fingem que não entenderam.

Até, cara. Dá um abraço no George.

MISSA

A hora em que o Senhor reúne suas ovelhas é a hora em que a província é mais tacanha e ensimesmada, a urbe é vila das almas e todos acreditam piamente na fraternidade entre os homens. Unem-se no mesmo rito o mendigo à porta da igreja e o turco da loja, que não fia nem à mãe. Caciques políticos que não se olham na cara ficam, a contragosto, debaixo da mesma abóbada. Todos perfeitamente equalizados na filiação divina, tentando honrar o que do Altíssimo receberam e merecerem a salvação no dia final.

- Andai com retidão pelos caminhos do Senhor. A quem muito foi dado, muito será cobrado.
O sinal da Cruz com água benta. Um olhar à esquerda e outro à direita, pra saudar os conhecidos antes de tomar assento. O Ministro da Eucaristia repassando a primeira leitura. Alô, sssssssommm.

- Vamos ensaiar mais uma vez o canto do ofertório, na página 3 do folheto.
Amalgamam-se velas, incenso, perfumes finos e populares. A igreja cheia. As velhas com suas novenas e missais, véus negros como os arabescos de jacarandá nos altares laterais. Essas velhas que ali fizeram a primeira comunhão, casaram-se e ali teriam, mais cedo ou mais tarde, sua missa de corpo presente. Enxergam a si mesmas no ataúde, em meio à homilia derradeira, imaginando a figura que fariam, como os parentes as vestiriam para a ocasião. E vagariam, os espíritos já fora dos corpos, pelos comentários de noras e filhos, genros e netos. Saberiam de verdade o que sentiam a seu respeito.

O preto da batina do padre, o vermelho vivo dos paramentos, o branco das pipocas estourando lá na praça.
- Será que teria mais um lugarzinho aí?
Cinco em um banco fica apertado, mas não é cristão negar. Oremos. Adoremos. Louvemos. Divaga o pensamento nas asas dos anjos pintados no teto. O confessionário, agora vazio, tão procurado nas horas mortas pelos reincidentes nas faltas capitais e veniais. O padre ouvindo, ouvindo sem olhar no rosto. Uma cortininha roxa e uma treliça de madeira separando o pecado da absolvição.

O toc-toc do salto alto de Dona Bela, ecoando igreja adentro. Poucos sabem seu nome, raros lhe dirigem a palavra. Estranha e circunspecta, a blusa fechada por uns duzentos botões. Sempre chega dez minutos antes, hoje atrasou. Religiosamente senta-se no mesmo banco, o terceiro à esquerda do altar.
Os olhares estáticos dos santos, como que impassíveis diante das preces.
Genuflexório de reflexões. A luz das nove da manhã, coada pelos vitrais, batendo na pia batismal.

- Esse sermão que não acaba mais. O padre hoje está inspirado.
Tudo muito mais solene no tempo do Advento. Olha que lindo o presépio, festões verdes e dourados, cachoeira ao lado da manjedoura. Estranho à liturgia e alheio ao que se passa, o cachorro pulguento fica pra lá e pra cá. Só de igreja tem uns quinze anos. Deve se sentir acompanhado e protegido. Um cão guardado por Deus. As mãos trêmulas do dono da farmácia passeando pelos mistérios do Rosário. Vem com os netos, uma fileira de pimpolhos. Cabelinhos repartidos, banho tomado, roupa de sair. Na hora do “saudai-vos uns aos outros”, vai um tempão até beijar todos eles. O farmacêutico era ateu. Até que teve um negócio, se agarrou ao Poderoso, pediu com fé sua cura, foi atendido e aí está. Convertido e devoto.
- Ave Maria, Gratia Plena, Dominus tecum...
As colunas, arcos e ogivas a elevarem aos céus os clamores de misericórdia e as alegrias pelas graças alcançadas.

O corpo leve: é a paz na alma. A bênção final, amém.
- Olha a pipoca, quebra-queixo, amendoim... Um coquinho para o seu menino?
- Levo sim. Dessa bexiga ele também vai gostar muito.
E lá vão eles, a passos lentos retornando às suas vidinhas, carregando nos corações todo o bem do mundo de meu Deus.

Sunday, November 06, 2005

BEM-VINDO AO SPA GHETTI


É uma alegria e uma honra recebê-lo em nosso Spa. Para que sua estada seja a mais agradável possível, pedimos seguir à risca as seguintes recomendações:

É terminantemente proibido o contato com alimentos pouco calóricos ou com caloria zero. Uma mudança radical de vida, que é afinal o que você busca, exige força de vontade. Em todas as circunstâncias, nosso lema é: EVITE A PRIMEIRA GOTA DE ADOÇANTE. Por minúscula que seja, é o suficiente para acarretar uma severa recaída e botar a perder todo o trabalho de nossos nutricionistas, psicólogos, médicos e personal trainners.

Na ingestão acidental de substâncias light ou diet, deve-se induzir o vômito ou proceder a uma lavagem estomacal, para desintoxicação.

Nossa tradicional sopa de toucinho com manteiga deverá ser ingerida preferencialmente em jejum, visando o máximo efeito terapêutico.

Bolsas, valises e malas serão revistadas diariamente pelos monitores. Balas e demais guloseimas sem açúcar, se encontradas, serão apreendidas e enviadas à família do hóspede. Em caso de reincidência, o próprio hóspede será remetido à sua cidade de origem, juntamente com seus bagulhos de sacarina.

Há alguns meses testemunhamos em nossas dependências um episódio constrangedor, no qual um interno foi flagrado com um pé de alface na cueca e dois maços de chicória escondidos nas axilas. Nosso detector de verduras e legumes, instalado na recepção, soará imediatamente se infrações semelhantes vierem a ocorrer.

Se, por recomendação médica, você necessitar de alimentação mais leve, sirva-se do nosso bufê de frutas: maçã do amor, banana caramelada, creme de abacate, abacaxi em calda e compota de goiaba.

A freqüência às piscinas só será permitida com trajes de banha ou camisetas de algodão doce.

O campeonato de Tiro ao Magro acontece diariamente, das 9 às 18h.

O ócio é o melhor amigo da genialidade e do impulso transformador. Exemplos disso são Dorival Caymmi, que fez tudo o que fez praticamente sem fazer nada, e Isaac Newton, que descobriu a lei da gravidade descansando embaixo de uma árvore. Nosso Spa é um monumento à inatividade restauradora. A única coisa que se mexe aqui são os ovos mexidos, servidos com fatias de cupim no café da manhã. Assim, lembre-se: ao invés de correr, ande. Ao invés de andar, sente-se. Ao invés de sentar, deite-se. Ao invés de deitar-se, peça que alguém coloque você na cama.

Para seu maior conforto, nosso projeto arquitetônico contemplou um total de 16 rampas em declive, permitindo que você chegue rolando aos diversos pavimentos. O retorno aos andares superiores poderá ser feito por teleférico ou guindaste.

Ao assistir TV, evite os programas humorísticos. Estudos recentes demonstram que o riso, ainda que contido, promove algum gasto calórico.

Como parte do apoio psicológico ao tratamento, sugerimos a leitura dos livros “Só é magro quem quer”, “À procura do quilo perdido”, “GG – Manual do Gordo Gostoso” e “Boi no Rolete – coma sem culpa”, todos à venda na portaria central.

Não deixe de visitar nossa sala de massagem, onde seu ego poderá ser massageado com as seguintes mensagens:
1 – Nossa, que gordo lindo!
2 – E aí, fofinha? Na minha casa ou na sua?
3 – Uau, onde é que vai com tudo isso?
4 – Essa é a nora que mamãe pediu a Deus.
5 – Sou gordo, mas quem não é? Saco vazio não pára em pé.

Por último, uma consideração de natureza filosófica: magros são perdedores, gordos são vitoriosos.
O magro é alguém que não conseguiu ganhar peso, ou que perdeu, o que de uma forma ou de outra o coloca como um fracassado – justamente por não ter ganho ou por ter perdido.
Você está aqui para ganhar peso. Conseqüentemente, isso fará de você um vencedor. Parabéns!!!

Sunday, October 30, 2005

MARCAS

O que será que faz o M do Mc Donalds, a curvinha da Nike, o jacarezinho da Lacoste serem o M do Mc Donalds, a curvinha da Nike e o jacarezinho da Lacoste? Na busca de uma resposta, homens de marketing divergirão de sociólogos. Que não necessariamente terão as mesmas convicções dos filósofos, cujos argumentos jamais convencerão os religiosos, que inspirados em seus dogmas travarão discussões acaloradas com os cientistas políticos. A celeuma se aprofundaria, ganharia a mídia e se transformaria num grande fórum de debates, certamente com o patrocínio da Coca-Cola, da Vivo ou da Volkswagen.

O fato é que as marcas estão aí, colossais e reluzentes, explícita ou subliminarmente a fincar suas bandeiras nas frágeis massas cinzentas.
Tenho um amigo, publicitário, que arranca todas as etiquetas visíveis de suas roupas. Entende ele que essa é uma forma de propaganda e, até onde sabe, jamais será remunerado pela veiculação. Então, tesoura nelas. Nem bem saem das lojas e as roupinhas de grife viram genérico. "Ainda se a roupa saísse de graça, vá lá, tudo bem. Até toparia a permuta" – diz ele. "Eles me dariam as calças, camisas e sapatos e eu sairia pra rua desfilando as marcas deles".

Tá certo que esse meu amigo é um tanto radical. Mas tão xiita quanto ele é aquele cara no extremo oposto, que compra a etiqueta e só depois é que repara no produto em volta dela. "Grifado" da cabeça aos piercings, o talzinho é um verdadeiro anúncio ambulante. Veste o que veste não pelo valor que atribui à indumentária, mas pelo status que supostamente darão a ele por se exibir com aquilo tudo. E lá vai o bacaninha dando um rolê pelos points da hora, se achando o rei da paçoca.

O poder da marca é um caso muito sério. Aí está o Branding - ciência que estuda a marca e sua dinâmica no relacionamento com o consumidor - que não me deixa mentir. E vale tudo para garantir que ela apareça e ganhe mercado. Até mesmo recorrer a obras-primas, que à revelia de seus autores acabam virando sinônimo de marca. O que será que Beethoven pensaria se soubesse que aquela curta e genial seqüência de notas, que alicerça sua Quinta Sinfonia, se transformaria no "pão pão pão pão" da Wickbold? Ou da sua "Pour Elise", comendo solta nas esperas telefônicas e nos caminhões de entrega de gás? Quando é que iria passar pela cabeça do autor de "O Sole Mio" que sua canção imortal viraria comercial do Cornetto? E por aí vai. "As Quatro Estrações", de Vivaldi, vendendo sabonete. O célebre "Aleluia" de Haendel, que já apregoou até remédio para prisão de ventre. A solene "Pompa e Circunstância", de Edward Elgar, por décadas reduzida à musiquinha do "Boa Noite Cinderela", antigo quadro do Programa Silvio Santos. A lista é interminável. Se bobear, "Águas de Março" daqui a pouco vira jingle de guarda-chuva, pra desespero do meu amigo xiita. Que, aliás, anda sumido. Deve estar desempregado.

TUDO SERÁ COMO SEMPRE

Sucedeu que ele acordou com aquela idéia na cabeça: fazer tudo diferente do que estava acostumado. Tirar a vidinha do piloto automático. Lembrou daquele famoso pressuposto da programação neurolingüística, que aprendeu num curso rápido sobre o assunto: SE VOCÊ CONTINUAR A FAZER O QUE VEM FAZENDO, VAI CONTINUAR A OBTER O QUE VEM OBTENDO. A afirmação era óbvia, tão óbvia que parecia estúpido levá-la a sério. Até que caiu a ficha. E ele resolveu que aquele era o dia da guinada.

Começou na cama mesmo. Absteve-se da interminável sessão de bocejos e espreguiçamentos e de um salto pôs-se de pé. Fez trinta flexões, bem mais que as cinco de costume. Inverteu a ordem dos remédios - primeiro o da pressão, depois o complexo B.

Escovou os dentes começando pelos do fundo e terminando pelos da frente, exatamente como nunca tinha feito. Não se barbeou. Vestiu um terno verde e uma gravata prateada. Sentou-se à mesa, na cadeira da outra ponta. Ao invés de colocar na xícara bastante leite e um pouquinho de café, pôs muito café e quase nada de leite. Se despediu da esposa com um beijo no rosto, e não na testa.

Quando saiu já ia fazendo o caminho de costume, mas a tempo pegou outro rumo.
Ligou o rádio do carro. Tirou da CBN e sintonizou num programa sertanejo. Parou no semáforo e dessa vez comprou as balinhas que o garoto ofereceu. Passou em frente à igreja e não fez o sinal da cruz. Estacionou o carro na vaga do chefe (ele nunca estava mesmo). Subiu pela escada, não ia se repetir tomando o elevador. Decidiu que não responderia nenhum e-mail, por isso nem abriu sua caixa de mensagens. Trocou o mouse pad, limpou o monitor com álcool, mudou o protetor de tela e as cores do windows.

Na hora do almoço, aproveitou para não almoçar. Foi ao cabeleireiro. Abriu a Veja no lugar da Caras. Folheou de trás pra frente. Pediu para o cabeleireiro repartir o cabelo do outro lado. Retornando ao trabalho, "matou" uma tia velha e disse que precisava ir ao velório em Barbacena. Foi à sauna, depois ao cinema. Nenhum drama de consciência ao fazer isso em plena terça. Voltou pra casa duas horas mais cedo que o costume. No horário de sempre se recusara a voltar. Antes, comprou rosas para a esposa. Abriu a porta e flagrou a mulher com o seu chefe, que calçava os seus chinelos e bebia o seu conhaque. Os dois ajoelhados no chão do quarto, levando chicotadas do vizinho do 206, travestido de mulher-gato.

Não fez ruído nenhum. Do mesmo jeito que entrou, saiu. Ia deixar tudo como estava. Caso contrário perderia a mulher, teria que arrumar outro emprego e sairia nos jornais como assassino de traveco. Voltou para a empresa. As flores deixou com a Laura, recepcionista. Com um cartãozinho discreto, confirmando o motel para depois das seis e meia. Como sempre.

AMANTE MANTIQUEIRA

Do meio da escada rolante, na grande cidade cinza, galopo mentalmente nesse azul esverdeado que é todo teu, Mantiqueira. Montanha acima, vou me encardindo com teu musgo, devasso tua vastidão, perdidamente me encontro em tuas veredas e cipoais. E já tão verde quanto és, me camuflo do mundo e me confundo contigo, no enlace fecundo entre o animal de mim e o vegetal de ti. Sigo extasiado com a pintura de teus crepúsculos, desvirginando lendas guardadas desde o Gênesis nas copas de tuas árvores. Trazidos por fresca aragem passam caboclos e curupiras, camafeus de sinhazinhas, rocas de negras velhas, ais de chibata e de gozo, a grande saga dos séculos que ao longo de tua extensão pudeste testemunhar.

Ouves agora esse eco? É toda a tua quietude aos berros dentro de mim. Mais um pouco e o sol a pino vai mudando teus matizes e o canto de teus pássaros. Abro as porteiras do tempo em teus nativos espaços, amasso o barro de tuas trilhas, sobrevôo esses mares de morros que começam não sei onde pra acabar em nunca mais. Tuas termas de extintos vulcões, o enxofre a exalar de tuas entranhas. Reconheço minhas veias nos veios de tuas rochas. Me revelas calmamente cada um dos teus segredos. As Pratas de tuas Águas, as Caldas de teus Poços, a tua tão Boa Vista. Me falas dos milhões de anos que levaste na feitura disso tudo. Da paciência que tiveste, das metamorfoses que sofreste, do quanto que esperaste para me ver assim, rendido aos teus encantos. Me contas histórias antiqüíssimas, gravadas em xistos, calcários e granitos, num dialeto ancestral só partilhado por nós dois. Me inicias em teus saberes e teus sabores, me mostras picadas abertas por bandeirantes atrás do ouro das Gerais. Me escancaras despudoradamente as jazidas de teus minérios. Teus urânios, que enriquecidos te empobrecem. Tuas fontes radioativas, tão indefesas e tão vítimas da cobiça extrativista. Me banhas maternalmente em tuas cascatas, me ensinas que é por causa delas que teu nome é "Serra que Chora", em tupi-guarani.

Mas o que me revelas é quase nada diante daquilo que escondes. O insondável que há por trás de tuas neblinas - uma interrogação que, mesmo fluida, é tão pesada como o ferro que produzes. Porque és, Mantiqueira, quinhentos quilômetros de mistério. Guardas em tuas nascentes o código genético da Terra, sentiste em teu manto silvestre o dedo do Criador. Ele, que te concebeu mulher, de encostas sinuosas e insinuantes para propositadamente seduzir os homens.

Wednesday, October 05, 2005

EM QUE POSSO AJUDÁ-LO?

I

- O senhor vai me desculpar, mas sem o carimbo do Teixeira não tem jeito.
- E o Teixeira não está?
- Não.
- E o carimbo dele?
- O senhor me respeite. Olha o desacato ao servidor...
- Vai me dizer que o Teixeira leva o carimbo quando sai da repartição? Olha só, tem um carrossel lotado de carimbos aí do seu lado. Será que o do Teixeira não está aí, não?...
- Bom, enquanto isso vamos vendo os outros documentos. Trouxe o DIRC atualizado da Paresp?
- DIRC da Paresp... DIRC da Paresp... Tá na mão. E quitado antes do vencimento.
- Só que tem uma coisa... esse adendo da minuta ainda não foi averbado na Junta.
- Não entendi.
- O Benê do guichê 11 vai explicar direitinho pro senhor. Mas já vou lhe adiantando que tem que voltar até o 8º Cartório e reconhecer de novo a firma do antigo proprietário. Essa aqui não vale mais. Então, é melhor fazer o seguinte: antes de ir pro guichê 11 o senhor vai até o terceiro andar e fala com a Wilma. Saindo do elevador, primeira à esquerda, primeira à direita, de novo à direita e o senhor vai dar de cara com uma salinha verde, que tem um bebedouro quebrado.
- Sei, debaixo de um calendário da Seicho-No-Iê. Estive lá na semana passada.
- Isso. É só pegar a senha e aguardar ser chamado.

II

- Eu vou lhe dar um protocolo da requisição. O senhor leva até o Denorf e solicita a emissão do Nada Consta da Delegacia Fazendária. Não demora muito, não.

III

- Bons antecedentes, ok... Certidão Negativa de Débito, ok... habite-se, registro do inventário, 2 fotos 3x4. Mas eu preciso também do requerimento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e os últimos cinco boletos do ISSQN, comprovando o recolhimento. É que antes da homologação do prontuário, o DPTS pede o formal de partilha em duas vias. Até julho do ano passado podia fazer por procuração, só que agora o cartório está exigindo a presença da pessoa.
- Mas ele mora em Muzambinho...

IV

- Aparentemente só estão faltando o número do PIS Pasep do inventariante e uma cópia frente e verso autenticada do ITBI pra poder dar baixa. Caso contrário não é possível correr com a papelada.
- Mas quando eu vim aqui da outra vez aquele senhor de óculos ali me disse que uma segunda via da...
- Não, não. De jeito maneira. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A petição tá certa, mas precisa constar uma ressalva prevendo o usufruto da viúva.
- E essa instrução normativa para unificação de cadastro?
- Isso aí pode levar embora porque não vai servir pra nada. O senhor me providencie um termo de responsabilidade, com assinatura de três testemunhas. É só disso que eu preciso, trazendo até segunda-feira pra mim tá bom. Agora, veja bem, isso aqui é a minha parte, entendeu? No guichê 14 vão informar ao senhor como dar entrada no pedido pra saber em qual jurisdição do CASP esse DERC deve ser encaminhado.

V

- Meu amigo, eu não estou autorizado a emitir o TCF sem a apresentação do canhoto do D.O.R. Além disso, olha só, tá faltando a rubrica do perito técnico. Outro dia mesmo apareceu um cidadão aqui com um caso parecido com o seu.
- Bom, resumindo...
- Só na Secretaria, das quinze e trinta às dezesseis e quarenta. E traga também um atestado de saúde.
- Ah, isso com certeza não precisa. Se eu não morri até agora correndo atrás disso tudo, é sinal que a minha saúde tá ótima.

Estava enganado, coitado. Cinco minutos depois, enquanto corria ofegante do guichê 7 para o 18, teve um mal súbito e morreu. O sub-escrevente adjunto adiantou-se e proclamou:

- Ninguém faz nada, ninguém toca no morto enquanto não sair o Alvará de Liberação do corpo. Mas já vou avisando que o Edmilson, que cuida disso, está de licença-prêmio e só volta daqui a seis dias.

Saturday, September 24, 2005

FAZENDO JUSTIÇA A IGNÁCIO ESCORBETA

Existem vultos injustamente esquecidos pela história, não obstante sua farta contribuição ao progresso da humanidade e ao bem-estar social. Dessa malfadada classe faz parte Ignácio Escorbeta, inventor da serpentina carnavalesca e do prendedor de roupas.

A serpentina foi concebida por Ignácio na segunda metade do século 19, a quatro mãos com outro Escorbeta, um primo residente em Mossoró. Desenvolvido o protótipo, de 75 metros de comprimento por 6 cm de largura, Ignácio arregimentou a mulher, os filhos e vizinhos e forjou uma folia doméstica, sem música alguma para animar. Enquanto lançava os rolos da recém-nascida invenção sobre os saltitantes convivas, observou que em 100% dos casos os mesmos não se desenrolavam, sendo arremessados intactos sobre as cabeças das vítimas.

Escorbeta atribuiu o fiasco à excessiva dimensão dos "rolinhos", que mais pareciam bobinas. Perseverante, voltou com ânimo redobrado ao laboratório.
Após meses de pesquisas e cálculos de resistência, Ignácio finalmente brindava o mundo com a serpentina na forma como a conhecemos hoje. Em comemoração o bairro todo foi saudá-lo com uma chuva de confetes, já inventado naquela época - daí se originando a dobradinha que tanto abrilhanta os festejos de momo.

Igualmente complexo foi o processo de criação do prendedor de roupas, outro prodígio de Escorbeta. A bem da verdade esse artefato já existia, com a finalidade de manter fechadas as embalagens de Cheetos na despensa. Coube ao nosso herói o lampejo de adaptá-lo a outro contexto. O problema é que o prendedor não chegava a prender a roupa, apenas a indiciava em inquérito. Somente as peças mais leves, como meias, cuecas, calcinhas e camisetas regata ficavam devidamente suspensas para secagem. O inconveniente foi sanado dobrando-se o número de espirais do arame que unia as duas partes de madeira do prendedor, garantindo assim maior poder de fixação. Os bons resultados não tardaram a aparecer. Maravilhado, Escorbeta foi às lágrimas ao constatar que seu invento prendia eficazmente qualquer tipo de roupa. Incluindo blazers, japonas, sobretudos e até vestidos de noiva.

Enquanto isso, do outro lado do mundo uma nova revolução se processava. Cansado de prender as roupas para secar em encostos de cadeiras, Vladislav Varal, um tcheco naturalizado belga, decidiu inventar algo mais prático. Mas isso pede um outra crônica.

ZAPPING

Hora de pensar, pensar. Hora de não pensar, ligar a televisão - essa fabulosa caixa hipnótica. Aperte o power do aparelho e acione o off do cérebro. Renda-se ao vício paralisante, entregue-se ao esvaziamento mental.

Mas a culpa não é toda da TV em si. Há todo um clima ao redor que induz ao não-pensamento: o cobertor e sua pelúcia acolhedora, a meia-luz do ambiente, a musculatura relaxada - tudo isso junto já é um pré-estado Alfa. Uma vez nesse estupor, é assistir ao desfilar de pastores em seus púlpitos, calouros se esgoelando, falsas loiras saracoteando seus predicados de silicone. Sem falar dos televendedores, a uma velocidade de oitocentas palavras por minuto, madrugada afora apregoando de títulos de clube a aparelhos ortodônticos.

Mas o ritual nem sempre foi assim, indolente e passivo. Tempo houve em que era preciso ginástica para gozar das delícias televisivas.
Quando a TV não pegava, os fantasmas apareciam ou os chuviscos aumentavam, deflagrava-se uma complexa operação que envolvia no mínimo duas pessoas. Uma plantada em frente à caixa, a outra virando o cano da antena, no quintal da casa.
- Melhorou?
- Não!
- E agora?
- Continua ruim.
- Assim tá melhor?
- Espera um pouco...volta pra onde estava antes.
- Assim?
- É.

Dois artefatos, hoje em desuso, orbitavam em torno dela: o conversor de UHF e o regulador de voltagem, também conhecido como transformador. Controle remoto não tinha. Nem precisava - eram só cinco as opções disponíveis. A então TV2 Cultura (canal 2), a Tupi (canal 4), a Globo (canal 5), a Record (canal 7) e a Bandeirantes (canal 13).
Com o advento do cabo e das miniparabólicas, a ordem é zapear. Então...

(zap)
Você pode perder até seis quilos em duas semanas. E não é só isso: fazendo agora seu pedido você ainda ganha este maravilhoso...
(zap)
- Mas me diga uma coisa, dona Antonieta. E agora, como é que está sua vida hoje?
- Ah, hoje o meu lar é abençoado. Como do bom e do melhor, tenho 2 padarias, 3 postos de gasolina...
(zap)
- Chegou a hora de você saber de toda a verdade.
- Onde é que você está querendo chegar? Do que você está falando?
- Maria Helena... Maria Helena... é sua filha!
(zap)
Só seis parcelinhas de setenta e quatro e cinqüenta, no cartão.
(zap)
Ohhhhh yes.... ohhhhh... hum, hummmm... oh yeeeeeeessss... ahhhh!!!!
(zap)
Foi sem querer querendo!
(zap)
Daqui a pouco a gente volta. Não sai daí.

1284 zaps depois...
Os olhos pesam, a cabeça pende molemente para o outro lado da almofada. A mão deixa cair o controle no chão. Aí você acorda, assustado com o barulho. Desliga a TV, apaga a luz, se ajeita sob as cobertas. Tarde demais: o sono se foi. Enquanto ele não volta, você liga a televisão.

Saturday, September 17, 2005

BICICLETA ERGOMÉTRICA: GUIA PRÁTICO DE CONVIVÊNCIA PACÍFICA

Você jurou a si mesmo que começava na segunda. Olha pra ela: novinha, reluzente, a nota fiscal sobre o selim. Dizem que vendo tv enquanto pedala o sacrifício fica mais fácil. O problema é que, pra arrumar um lugar pra ela, você teve que tirar a tv do quarto.
Uma bicicleta ergométrica é, literalmente, fria e calculista. Fria por ser metálica (no inverno deve ser repugnante chegar perto). Calculista pelo display multifunções que ostenta no guidom, se é que se pode chamar de guidom aquele troço que não guia ninguém pra lugar algum. Enquanto você veste o agasalho esportivo, ela parece dizer: "Coragem, rapaz. Prova que você é determinado, perde comigo aquela torta de ontem".
Você até pensou em comprar uma bicicleta comum, dessas de 18 marchas. Observando a paisagem a coisa ficaria mais lúdica e pitoresca, com a vantagem de mostrar pra vizinhança que você cuida da forma. Mas agora é tarde, e o que resta é lidar da melhor maneira possível com seu novo algoz. Aí vão algumas dicas:

- Meia hora é uma eternidade quando se está em cima de uma ergométrica. Melhor não ficar olhando a toda hora para o indicador de tempo de exercício.

- Não tente ler jornal enquanto pedala. Além de trepidar com o movimento - o que é péssimo para a vista, em minutos seu exemplar estará empapado de suor - o que será péssimo para quem folheá-lo depois de você.

- Evite pensar no esforço a ser feito - concentre-se nos conseqüentes resultados. Imagine-se com os pneus devidamente esvaziados e a região glútea fortalecida.

- Disfarce a aversão: seja amigável com ela. Cumprimente-a pela manhã, alise-a, pergunte como estão suas catracas. Faça dela sua aliada. Afinal de contas, ela estava muito bem lá na loja. Foi você quem inventou de trazê-la pra casa.

- Com o passar dos meses, o mecanismo começa a ranger. Isso é mortalmente irritante. Para contornar o problema, assovie sua música predileta. Ou mantenha à mão um óleo lubrificante de boa qualidade.

- Conforme-se com uma série de sacrifícios heroicamente praticados mundo afora, sem benefício algum para a saúde. O faquirismo, a auto-flagelação, as caminhadas sobre brasas, as filas nas repartições públicas. Você verá que, mesmo montado numa ergométrica, é feliz e não sabia.

Sunday, September 11, 2005

A HORA H

Homero na mesa 8. Helena na mesa 12.
Homero enfim está de volta. Helena não está mais à espera.
Homero saiu e ganhou mundo. Helena nunca arredou pé.
Homero guarda as cartas todas. Helena jogou todas fora.
Homero pode explicar tudo. Helena não quer saber nada.
Homero só pede um minuto. Para Helena, agora é tarde.
Homero olha para ela. Helena finge que não vê.
Homero acende um cigarro. Helena odeia fumaça.
Homero atende o celular. Helena retoca a maquiagem.
Para Homero, ela ficou bem de óculos. Para Helena, ele anda mal vestido.
Homero pensa: duas décadas. Helena acha que foi ontem.
Homero é reticente: de Peixes. Helena é incisiva: de Áries.
Homero acena a um velho amigo. Helena puxa a cinta-liga.
Homero chama outro whisky. Helena mexe o dry Martini.
Homero lembra do dia em que a viu pela primeira vez. Helena não esquece do dia em que tudo terminou.
Homero não está mais na bolsa dela. Helena continua na carteira dele.
Homero ganhou doze quilos. Helena, vinte e uma estrias.
Homero se rói de aflição. Helena não move uma palha.
Homero tem seu telefone. Helena não vai atender.
Homero, cheio de apetite. Helena, pronta a vomitar.
Arrependido, ele só teve uma outra. Pra ir à forra, ela teve quantos quis.
Homero quer dizer a Helena que promete se emendar. Helena jura que a emenda será pior que o soneto.
Homero está muito abatido. Helena está a fim de abater.
Homero anda atrás de um norte. Helena quer desnortear.
Homero insinua. Helena deixa claro.
Homero almeja. Helena se esquiva. Homero, vassalo. Helena, senhora. Homero acata. Helena ataca.
Homero contém. Helena extrapola. Homero quer deleite. Helena, deletá-lo. Homero ata. Helena desata.
Homero gagueja. Helena triunfa. Homero, a Sonata Patética. Helena, Carmina Burana. Homero jaz. Helena, jazz.
Homero, peteca. Helena, squash. Por ele, os dois voltavam no tempo. Por ela, seria tempo perdido.
Homero, o sonho. Helena, o ato. Homero, o ninho. Helena, a arribação.
Homero sem ação, sem noção, sem tábua de salvação que o remova do embaraço. Helena segura, liberta, com alta há muitos anos do analista.
Homero se sentindo adoecer. Helena quer que doa a quem doer.
Homero pulsa. Helena o repulsa. Homero pede paz. Helena, em pé de guerra.
Homero recorda os seus seios. Helena anseia uma vingança.
Vacilante, Homero caminha até ela. Altiva, Helena olha com desdém.
Homero a tira pra dançar. Helena atira pra matar.

NOTURNO EM DÓ

Ai meu Deus, o sono que carecia, nenhuma sombra de gente dando sinal de chegar. Virou-se para o outro lado. O toque fresco do lençol grosso de linho, o bafo dessa noite quase dia. A franja do cobertor, as cócegas no queixo, a pena de gastar a vida assim nesse sei lá.

- Mamãe, papai, Oscar, vocês prometeram que não iam demorar. Eu contava as horas, eu roía tanto as unhas. Fazia como os presos, cada dia um risquinho na parede.
Esse nada que não cessa, o baile de debutantes, bocas e colos, gravatas e vestidos longos. Era a última coisa que conseguia lembrar, o baile.

- Não resisto mais um dia. Quanto quero vocês todos, se soubessem. Parecia agora não ter ossos, uma larva sobre o leito. Flash, fast rewind. Alguém de chapéu panamá chegando, o couro do cinto, os vergões e a vergonha. Tinham-lhe aplicado uma injeção, quando deu por si estava ali, coisa solitária e quase sempre insone. Deus, de novo. O padre chegando para a extrema unção. Os olhos que a terra há de comer já podiam ver os vermes avançando sobre as íris. De novo o baile e seus cacos liquidificados. Éter e clorofórmio, o lança no lenço, lá pelas tantas a big band. Foi assim, ou assim lhe pareceu. Para chamarem uma ambulância era porque estava mesmo na pontinha do penhasco. Via caras que vinham, olhavam e voltavam dando lugar a outras caras, todas desconhecidas. Nem papai, nem mamãe, nem Oscar. Cadê vocês, onde um tiquinho de alento, uma placa indicativa?

Aquela mulher a quem nomeara mentalmente de Izildinha Sobe-e-Desce, embora tivesse um enorme “Frida” escrito no crachá. De pegnoir, archote na mão e diamantes cavalares no pescoço, fazia rabanadas e ia servindo-as com chocolate quente às esculturas do jardim. Gargalhava, escarnecia e expunha-se ao escárnio. Os anões de cimento, cinzentos e mofados pela chuva em seus lombinhos. Elementais sem bucho e suco gástrico, sem hálito ou papilas gustativas, comendo freneticamente como se o mundo fosse acabar daqui a pouco. Pensava agora em anotar o que ocorresse aí por diante. Fazia sentido: as palavras disparando o gatilho da memória, um passo à frente dos risquinhos na parede. Mas temia que o amontoado de relatos não guardasse relação com o que a mente arquivasse. Seria como olhar para o barbante no dedo e se perguntar: isso era pra lembrar do quê?

Em posição fetal, espera. Não demora e vem o homem com o copo d’água, o comprimido, aquela camisa que aperta, o banho de sol.

AD ETERNUM

Eis que de novo me deparo com a nada consoladora ideia de que o sistema solar é espantosamente semelhante a uma estrutura atômica, e que a diferença não passa de uma questão de proporção e de velocidade. E se a Terra for um dos elétrons de um dos milhões de átomos de uma ponta de lápis sobre a mesa de um escritório, numa outra e gigantesca Terra?

Largo Newtons, Galileus e Sócrates deitando postulados pelos cotovelos e me agarro ao manto de Abraão e ao cajado de Moisés, no pasto verde das verdades simples. Ovelha, deixo que me conduzam por dogmas que se bastam, convertido ao fato de que existem mesmo as moradas celestes, onde nem traça ou ferrugem, epidemias ou bandidos roubariam o sossego dos descendentes de Adão. Onde, indefinidamente vivos, habitaremos gratos. Cada família em sua casa de grossas paredes fincadas no éter. Mansões onde, após banquetes generosos, tem-se o sagrado direito à sobremesa predileta, que por também ser eterna se reconstituiria a cada mordida, para a glória das gulas.

Pais e mães tomando perpetuamente conta de seus rebentos, com muitas rugas a menos por saberem que suas crianças serão poupadas no juízo final, mesmo porque o juízo final não será tão final assim. A vida se espreguiçando infinito afora, o beijo mais sorvido se alongando até a exaustão, se exaustão houvesse no mundo lá de cima. Todos volitando com trechos de salmos impressos nas túnicas, Beethoven escorregando num tobogã clave de fá, nenhum passarinho preso, sinos aos montes dobrando e marcando a hora de lembrar que nunca é tarde.

Tempo e espaço se liquefazendo, Van Gogh de velocípede a ziguezaguear por latifúndios de girassóis. Cada um se lambuzando de sua Pasárgada privativa, desobedecendo zombeteiramente as recomendações médicas, sem noção de comedimento e sensatez, metendo os pés pelas mãos, fazendo tudo o que faltou ser feito quando envolto pela carne. Se convencer de que a Terra é plana, de que aconteceu o dilúvio, de que tudo foi criado em exatos 6 dias, sem nenhuma hora extra ou percalço que desanimasse o Maioral. Ter a confiança dos que se sabem amparados, e saltam sem se preocupar se o paraquedas vai abrir.

VAMOS TODOS CIRANDAR

Meu eu pequeno me chama para um passeio no tempo. Achava mesmo que vinha. Me deu a mão e saímos rumo ao ingênuo de nós.
É de manhã, tem escola. Entramos na sala de aula. Carteiras de dois lugares, com buracos para tinteiro. Alguns tacos soltando. As grandes cortinas, com o vento, pareciam velas abertas. A pasta com material tem guache, canetinhas hidrográficas Sylvapen, papel almaço, Desenhocop. Um cheiro forte de álcool vindo da sala do mimeógrafo. Cartilha Caminho Suave, rangido do giz na lousa. O sino: hora do recreio. Bala de leite Kids, lanche Mirabel, Merengue da Milktex. Alguns meninos brincando de pula-sela e lenço-atrás. Os mais velhos jogavam queimada.
Depois do colégio, voltamos pra casa. No quarto, os 18 volumes do Tesouro da Juventude. Revistas Recreio. Puff de vinil. Kikos marinhos. Dois bambis de pelúcia, empalhados e com olhos de vidro. Coleção Disquinho, cada um de uma cor, com histórias infantis, ao lado da Sonata portátil e dos livros com as Jóias dos Contos de Fada. Bolas de gude, verdes, azuis, rajadas. Telejogo. Botões de futebol com fotos dos jogadores. Bate-bate, que dava hematoma nas mãos e nos pulsos - diversão da mesma época do Vai-e-Vem, outra coqueluche entre os moleques.
Abro a porta do armário (com um adesivo "Brasil, ame-o ou deixe-o") e um mundo de coisas desaba em cima da gente. Kit "O Pequeno Químico", rádio galena, carteirinha do clube, robô a pilha, Mustang de fricção, cofrinho da caderneta de poupança Haspa. Uma bola de capotão número 2, meio murcha e com os gomos descorando, e outra Dente de Leite. Caleidoscópio com pontas de lápis de cor, confete que sobrou da matinê do ano passado, rolinhos de espoleta, molas que desciam escadas. Na parte das roupas, blusa cacharrel, camiseta Hang Ten, calça Gledson. Na sapateira, Kichute, Bamba, botinha com palmilha para pé chato. Ioiô de elástico e serragem. Caninhos de antena para as guerras de feijão cru. Xilofone da Hering. Miniaturas Matchbox, soldados e índios de forte apache. Estalinhos de salão. Embaixo da cama ficavam o Autorama do Emerson, os pés-de-pato e a prancha de isopor.
Seguimos pelo corredor. Ao final dele, numa mesinha art-nouveau, o telefone preto de baquelite. Um chumbo, com a marca Ericsson em letra manuscrita no disco. Os números das linhas só tinham quatro dígitos. Ao lado, um ventilador Bomclima com grades reguláveis. É quase meio dia e um aroma de bife acebolado se mistura ao da cera do assoalho.
A sala. Televisor Colorado RQ preto-e-branco, com seletor de canais manual e barulhento. Depois da Vila Sésamo vinha o Zorro, Flipper, Terra de Gigantes, Viagem ao fundo do mar. Na parte de baixo do vídeo ficavam passando, em caracteres, as cotações da bolsa de valores. Abrindo todos os programas de TV, o Certificado de Censura Federal.
Depois de cruzar a cozinha, chegamos ao quintal. Um alvo sem os dardos, cavalinho de pau, vasilhames de Coca-Cola Família, carrinho de rolemã, bambolë, Canguru da Estrela, Caloi Cross com carta de baralho na roda traseira, para imitar barulho de moto. Passamos horas ali, revirando cacarecos e lembranças.
A noite cai de repente, trazendo uma lua de cinema. Levo pra dentro o menino, cheio de cloro nos cabelos, os cotovelos esfolados e um brilho que só aos meninos é permitido ter nos olhos. Tira do short um pacotinho de gotas de pinho Alabarda e algumas figurinhas dos craques da seleção de 70. Pede que eu guarde pra ele. E o levanto até meu colo, afago sua cabeça e sinto sua pulsação. Nada ele diz, nem eu.
Voltamos os dois para o quarto. Joga-se exausto na cama, olha pro lado e se reconhece na foto sobre o criado-mudo. Me encara demoradamente e abre um sorriso largo, ignorando o que o tempo andava tramando pra ele.
Pedi pra que abrisse a boca: ainda tinha as amígdalas. Nenhuma obturação nos dentes. Nenhuma ruga na testa, nenhum assunto pendente pra atrapalhar o seu sono, nenhuma idéia do que gostaria de ser quando crescesse. Ainda faltava muito para a primeira namorada, o primeiro porre, a primeira noite fora de casa, a primeira história tola que se meteu a escrever. Ainda faltava quase tudo, e ele não queria perder nada.
- Agora vai dormir que está na hora. Amanhã você tem que acordar cedo.
- Amanhã é sábado, esqueceu?
- Tem razão, é mesmo. Então espero você às cinco pra gente ver "Os Waltons".

Saturday, September 10, 2005

AULA DE RELAXAMENTO

VAMOS LÁ, PESSOAL. INSPIRANDO... EXPIRANDO... SENTINDO CADA MÚSCULO DO CORPO TOTALMENTE RELAXADO, MOLE COMO MACARRÃO COZIDO...

É, macarrão pode ser uma boa pro almoço. Não dá tanto trabalho, abro uma lata de molho e pronto. Latitude e longitude, tenho que lembrar a definição certinha pra ajudar o Júnior na lição. O computador está no conserto, preciso pesquisar em outro lugar.

VISUALIZEM AGORA UMA LUZ AZUL, SUAVE E REPOUSANTE, ENVOLVENDO TODO O SEU SER...

Quando estava no ginásio era tudo na munheca, copiando a lápis da Barsa. E tinha que ser na biblioteca. Bem incômodo, mas pelo menos os livros não pegavam vírus. Quando muito, umas traças.

CONCENTRANDO O PENSAMENTO EM UM MANTRA OU UM OBJETO. UMA VELA COM A CHAMA ACESA, POR EXEMPLO. QUIETUDE TOTAL...

Esse eco de academia. Que quietude é possível? O mundo quieto, cale-se, Chico Buarque. Dizia tudo falando em código. Ditadura. Julinho de Adelaide, o pseudônimo que ele adotou pra burlar a censura. Nossa, eu lembro disso. Tinha uns 14 na época. Cale-se, vai. Vê se presta atenção na aula, Denise.

A IDÉIA É APAZIGUAR O CÉREBRO, AFASTAR IDÉIAS FIXAS E OBSESSIVAS...

De novo aqueles montinhos pretos e malcheirosos na minha grama. O cachorro é dela, caramba, ela é que tem que dar um jeito nessa situação.

SINTA-SE LEVE, IMAGINE-SE PAIRANDO ACIMA DO CORPO...

Leve, é? Sei, sei. É dieta, caminhada 4 vezes por semana, e vai ver... Fora as pelancas. Agorinha, quando baixei a cabeça, senti a pele do rosto se desprendendo dos ossos, cedendo à lei da gravidade. Ai, meu Deus, comigo não. Não está acontecendo, livrai-me.

NESSE ESTÁGIO EM QUE ESTAMOS, AS ONDAS CEREBRAIS ENTRAM EM OUTRA FREQÜÊNCIA...

Terça que vem é aniversário do Jonas. Afilhado não é filho, vai uma lembrancinha de 1,99 mesmo. Melhor já comprar no caminho de volta.

LEMBREM-SE QUE 12 MINUTOS DESSE EXERCÍCIO EQUIVALEM A 4 HORAS DE SONO PROFUNDO...

Espera aí, tinha mais uma coisa pra fazer. Café e mussarela na padaria, a pilha do portão eletrônico, água oxigenada pra clarear esses pêlos pretos do antebraço... Malditos pêlos, devia ter nascido homem. Tudo muito mais prático. Que mais que tinha que fazer mesmo?

O STRESS, AS PREOCUPAÇÕES, A ANSIEDADE, NADA DISSO EXISTE AQUI. JUNTOS ESTAMOS TRANSCENDENDO O COTIDIANO ASFIXIANTE E MESQUINHO. ENTRANDO NUMA NOVA DIMENSÃO PLENA DE PAZ, TRANQÜILIDADE E HARMONIA...

Lembrei: o Lexotan! Ah, não... esqueci a receita lá em casa.



Julho, 2005

Wednesday, September 07, 2005

CONSULTÓRIO SENTIMENTAL

Duas médicas conversando na cantina do hospital.


- Promete que fica só entre a gente?
- Lógico. Prometo, em nome da ética médica.
- Então tá. É que... estou tendo um caso clínico.
- Jura? Alguém da área?
- Ahã. Olha só essa radiografia que a gente tirou no último fim de semana prolongado.
- Nossa, que pulmões. E a faringe, então... Esse pomo de adão, tão proeminente. Que sorte a sua hein, colega. Isso aqui é objeto de estudo pra um simpósio internacional. Merece abordagem multidisciplinar.
- Quando olhei aqueles globos oculares, sem nenhum grauzinho de miopia ou astigmatismo, quase tive uma síncope. Foi adrenalina na veia. Observe essa ressonância magnética. Fala a verdade: que omoplata! Dá pra ficar assintomática? Você sabe que quadros dessa natureza provocam desde espasmos involuntários até a perda momentânea da consciência.
- É, ele é muito parassimpático.
- Parassimpático? Aquilo é uma aula de anatomia. Desequilibra o nível de estrógeno de qualquer mulher.
- E aí, conta. Partiu pra um exame mais detalhado? Na sua residência médica ou na dele? Conta, conta.
- Fiquei anestesiada. Quando dei por mim, já estávamos na maca.
- Nossa, assim na primeira consulta?
- Pra você ver. Confesso que no começo foi difícil me manter estável. A pressão chegava a 25 por 13, o coração a 140 por minuto.
- E daí pra frente? Qual a posologia?
- No mínimo três vezes ao dia.
- E nada de repouso absoluto?
- Nadinha, menina. Uma febre que não passava. Depois os sintomas foram desaparecendo, e toda aquela convulsão amorosa evoluiu para uma forte letargia. Parecia uma espécie de maleita, com freqüentes episódios de apnéia.
- É, já vi relatos semelhantes. E aí, deixou de apresentar sinais vitais?
- Falência múltipla. Estado terminal, com pouquíssimas chances de reversão.
- Seja paciente. Tem retorno marcado?
- O pior é que não. Ele me usou, como se eu fosse um convênio, um SUS qualquer. Não vou me conformar em ser mais uma na história clínica dele.
- Não estressa, não. E se por acaso ele agendar um horário, faz um charme. Dá uma de difícil, deixa o bonitinho na sala de espera. Como eu fiz com aquele judoca tarja preta, que me causava dependência. Eu sei como são essas coisas. Precisando de um ombro amigo, estou aqui de plantão.
- Valeu, obrigada mesmo.
- Só me promete uma coisa.
- Fala.
- Se der enjôo, manda ele pro meu consultório. É sempre bom uma segunda opinião...
- Sua Hipócrates!

AO MEU TATARANETO

Querido sei lá quem, sangue do meu sangue, obra de minha co-autoria que leguei inadvertidamente à posteridade,

Espero que esta o encontre com saúde, se é que um dia irá encontrá-lo, e isso contando que você venha de fato a existir. Estava olhando umas fotos e de repente me pareceu interessante a possibilidade de comunicação entre mim, que há muito já estou morto, e você, que ainda está por nascer. São retratos da sua bisavó, desde os 3 meses até os 16 anos, idade atual dela. Estão em porta-retratos de bronze, que enchem 2 prateleiras do meu escritório. Aliás, você não imagina o que essa veneranda senhora grisalha, de ares matriarcais e que seguramente implica com tudo aí na sua casa, vem aprontando agora que é novinha. Só quer saber de ICQ, MSN, chat e bate-papo. Almoça e janta internet, algo que está para o seu cotidiano assim como o telégrafo está para o meu.

Talvez essas fotografias a que me refiro estejam aí no futuro, descoradas e quebradiças nos cantos, pegando mofo dentro de uma caixa de sapatos - embora essa seja uma forma de guardar recordações típica do século 20. Já os porta-retratos, é duvidoso que tenham atravessado gerações. Algum ascendente seu, mal intencionado ou mal das pernas, na certa há de ter transformado todo esse bronze em uns bons cobres.

Tenho 41 anos e são precisamente 23 horas e 17 minutos do dia 22 de julho de 2005. Os galos ainda cantam de manhã, 99,9% das pessoas têm que trabalhar duro pra sobreviver e até o momento não se têm provas definitivas da existência de seres extraterrestres. Muitos dos grandes dilemas da raça humana continuam insondáveis, como a vida após a morte, a influência dos duendes na pressão atmosférica e o que fez Ronaldinho amarelar na final da Copa de 98. Ainda não descobriram as curas da Aids e do câncer. Mesmo passados quatro anos, as pessoas guardam bem vivas as lembranças do atentado que derrubou as torres gêmeas de Nova York, em setembro de 2001. Bento XVI é Papa há poucos meses e tem cara de poucos amigos. O Brasil ferve com os escândalos de corrupção envolvendo o partido do atual presidente da república e uma imensa corja de deputados.

Outro assunto muito em voga ultimamente é a clonagem. Em larga escala, contudo, só existem as de cartão de crédito e placas de carro. Gerar clones com certeza é corriqueiro aí. As cidades todas devem ter lojas ou centros de clonagem, algumas até abertas 24 horas e com serviço de leva-e-traz. Aposto que nas casas de classe média proliferam forninhos que cozinham, assam, fritam, douram e clonam alimentos. Fico imaginando que maravilha pras donas de casa. Bife, por exemplo. É fazer uma vez e clonar pro ano todo. E se a moda pega isso vale pra tudo: Scotch 12 anos e caviar, inclusive. Uau! Expressão antiga essa, né? Até pra esse seu provecto tataravô isso soa velho.

É inverno, faz frio onde estou e escuto Os Tribalistas - um disco que, espero, possa desafiar as décadas e chegar também aos seus ouvidos. Quem sabe exista uma máquina aí em dois mil e oitenta e tanto, que viajando à velocidade da luz possa voltar ao passado e trazer você aqui, de presente ao meu momento. De repente você pode até escolher este instante em que escrevo pra fazer isso. A propósito, que plataforma terá a escrita no seu tempo? Talvez já existam mixers de palavras e frases, eletrodomésticos que processem livros inteiros e em estilos diversos num passe de mágica. Mas não tenho esperança, não. Quando garoto, imaginava o ano 2000 com as pessoas movidas a foguetinhos auto-propulsores e curtindo férias em Júpiter. Passamos por ele e nada de mais aconteceu, com exceção de algumas toneladas extras de fogos em Copacabana. Até o bug do milênio foi um fiasco, tão frustrante quanto a passagem do Cometa Halley, em 1986. O século 21 chegou e as roupas continuaram de pano, os carros continuaram saindo de fábrica com os motores a explosão da época de Henry Ford, o homem continuou sendo o que sempre foi: um tubo processador de cocô.

Vou ter que parar por aqui porque a campainha está tocando. Algo que agora não vai dar tempo de te explicar o que é. Ou melhor, o que era.

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BÁRBARA TARDIA

Assim seja. Sob a névoa da alfazema e a providencial intercessão dos santos, amém a tudo e a todos - aflições, alívios, destemperos, calmarias. Haveria mesmo de chegar a hora e a idade em que o melhor era aceitar tudo. Desse jeito tinha de ser um dia. Fechou a porta do oratório, caminhou até a sala e tirou da estante um livro que nada tinha a ver com o seu estado. Acendeu a lareira, abriu um vinho, sentou-se. O coração quieto, o ouvido atento ao crepitar da lenha, nunca esteve tão disposto a colocar alinhadinhos cada um dos pensamentos. Gostava do domínio linear das coisas, de dar ordenamento e organização a tudo. Tentou ler. Via as palavras sem captar direito seu sentido. Poderia ligar o aparelho e ouvir alguma música, mas não se atrevia a pôr de pé seu ser plasmado na poltrona. Era a isso que se reduzia, uma vida fossilizada naquele ermo pastoril. O vento chicoteando a vidraça, as xícaras tremulando, o pó se acumulando sobre a farta biblioteca que seu pai deixou. Do Pequeno Príncipe a Sófocles. O cachorro se achega e se amontoa aos seus pés, aproveitando uma beirinha de manta. O vinho ia aos poucos laceando o raciocínio, dando corda aos devaneios. Viu o seu reflexo, distorcido, na prataria de família. Parecia uma figura de Modigliani. Acima da lareira jazia o retrato do avô com seu olhar de Torquemada, a ditar cânones e a citar genealogias.
Bárbara devia estar a caminho, disse que vinha sem falta. No oco daquele silêncio, escutaria de longe o carro quando estivesse chegando. Era uma doida, mesmo. Ria e falava alto pelos corredores longos e ecoantes do hotel onde tantas vezes se encontraram. Gostava dos escândalos, não tinha meias medidas, tudo precisava ser muito, intensamente e quando bem entendesse. Sempre foi assim, aprendeu a aceitá-la e a desejá-la sobretudo por aqueles seus defeitos. Ele próprio talvez fosse o maior defeito dela. Daqui a pouco o cachorro sairia dos seus pés e correria até a porteira, fazendo festa para a velha conhecida. Ela viria fresca, como se tivesse acabado de sair do banho. Mesmo depois das seis horas de viagem. Mesmo com as rugas vincando e o estrógeno já escasso. Mesmo com o bom senso dos parentes e amigos dizendo que não, que era loucura.
Segunda taça, já pela metade. Roía as unhas, Bárbara não chegava. Puxou o cordão, deixou semi-aberta a persiana. E pelas frestas iam passando novelos de muitas meadas, a se perderem em labirintos de hera. Sentia o ranger de uma roldana enferrujada em sua cabeça, que ia tirando devagar as querenças e desafetos do seu poço. Matar a sede não matava, mas revolvia a água parada - o que já era alguma coisa. Que pensamentos alinhadinhos, que nada. Ao olhar para as estrelas, deu um giro e perdeu o eixo. Só não caiu pois se agarrou com toda força num poema de Pessoa. Olhou o relógio: dez para as oito nos algarismos romanos dos cebolões, dos carrilhões dos mosteiros, dos cucos das tias velhas, dos digitais made in China. É isso, pensava ele, a única maneira da passagem do tempo ser de alguma forma bela: através dos lindos mostradores de relógio.
Bárbara sofreu, sim. Teve que se virar como pôde depois da morte do marido. Foi de repente, um assalto no semáforo. Nunca desconfiou de nada, o coitado. Acreditava que as saídas dela eram mesmo a trabalho. Crédulo demais. Imagina se ela, bibliotecária de órgão público, precisava viajar tanto. Nas tardes vazias do ofício foi que cismou de escrever. E escrevia escorreitamente, deitava no papel o que vinha à cabeça, sem caprichos de coesão, estilo ou nexo. Prosa desordenada, sempre em primeira pessoa. Às vezes mostrava a ele o que fazia. Não gostava nem desgostava. Sorria, de vez em quando elogiava, logo mudava de assunto, sugeria a volta pra cama.
Ele nunca quis escrever. Passava muito bem sem nenhuma idéia em mente. Durante alguns anos teve um diário. Cadernos que mantinha escondidos, depois relidos e prudentemente queimados. Pensava naqueles sujeitos todos, escritores que às vezes via em entrevistas na televisão, falando de inspiração e compulsão pela escrita, em anotar idéias nos guardanapos de restaurante, em ter insights fazendo a barba e outros clichês. Elcius latiu e abanou o rabo. Era Bárbara que chegava, junto com Veridiana. Da cozinha, um cheiro bom de bolinho de chuva.
Foram entrando sem bater à porta, Elcius se enfiando entre suas pernas.
As botas de salto altíssimo batendo nos lajotões. A Bárbara de sempre, imperativa e dominadora, dando ordens aos criados.
Há muito não via Veridiana. Uns quatro anos mais nova que eles, observava com atenção cada detalhe da sala, pondo e tirando compulsivamente os óculos ovais. Enfim cedia aos insistentes convites de conhecer a estância. Passava de meia-noite quando se recolheram. No leito, virando de um lado para o outro, a roldana enferrujada não parava de ranger. O barulho acordou as duas, no quarto ao lado. Não, não estava acontecendo. Bárbara e Veridiana, diáfanas e seminuas à sua frente. E não era sonho, tampouco efeito do vinho. Na manhã seguinte, contritos, foram os três ao oratório.

FALTA CRÔNICA DE ASSUNTO

Desconheço cronista que não tenha feito da falta de assunto o assunto para uma crônica. No papel de aspirante a escrevinhador de algo que sirva, e para não fugir à regra, lanço mão do expediente. E elejo a crônica como o assunto dela mesma.

Ninguém sabe definir ao certo o que seja a crônica enquanto gênero literário. É meio terra de ninguém: não é história, não é poema, não é relato, não é dissertação, não é narração. Ao mesmo tempo, pode ser um pouco disso tudo. Pode ser até romance, já que o Gabriel García Márquez batizou um dos melhores de sua lavra com o título "Crônica de uma morte anunciada". Particularmente, nem a classificaria como literatura, com exceção das do Rubem Braga, as do Carlos Drummond e as do Stanislaw Ponte Preta, que alçaram o gênero à máxima dimensão. Literatura é coisa mais séria e pretensiosa, tem que ser de conto pra cima. Crônica é assunto do dia, sai hoje no jornal e amanhã embrulha peixe. Por mais sarcástica, bem humorada ou inteligente que seja, está fadada ao mais completo, inevitável e muitas vezes merecido esquecimento. Quando das boas, daquelas poucas com a virtude de levar o leitor à reflexão, seu efeito salutar sobre os neurônios é de no máximo dez minutos. Em que pese o inglório esforço do cronista, que chega à exaustão em seu burilamento - mais cortando palavras do que propriamente escrevendo. Quem lê alguma do Verissimo, por exemplo, tem a nítida impressão, pela leveza e fluidez do texto, de que ele escreveu tudo numa sentada. O que não deixa de ser verdade: uma sentada de horas e horas sem levantar o traseiro da cadeira.

Crônicas, como se sabe, também são algumas doenças. O Aurélio define-as como aquelas "de longa duração, por oposição às de manifestação aguda". Paradoxalmente, a de que falamos quase nunca é longa. E muitas crônicas são extremamente agudas, de uma ferocidade febril e palpitante. Se por um lado crônica é uma classificação de doença, o que não falta é doente por crônica. Aquele sujeito que abre o Estadão, a Folha, a Veja e vai direto ao Carlos Heitor Cony, ao João Ubaldo Ribeiro, ao Mário Prata. O mesmo Aurélio estabelece "croniqueiro" como sinônimo de cronista. Nada pessoal, mas o termo me parece pejorativo. E me lembrei, por semelhança vocabular, dos injustiçados "pianeiros" - heróis anônimos do início do século passado, que nos cinemas faziam fundo musical aos filmes mudos - assim chamados no intuito de segregá-los como casta inferior em relação aos pianistas de concerto.

Por incrível que pareça, tem crônica até na Bíblia. Pode acreditar. E olha que são dois livros: Crônicas I e Crônicas II, ambos de autor anônimo - embora estudiosos suponham ter sido o sacerdote Esdras o escriba das obras. Os livros das Crônicas são também chamados de Paralipômenos - palavra grega que significa Coisas Omitidas. O estilo é absolutamente factual, e abrange toda a história sagrada até o exílio babilônico. Grande parte da narrativa é descrição genealógica - fulano que gerou sicrano, que gerou beltrano. Começa por Adão e vai até a morte do rei Davi. O segundo livro tem início com Salomão e se encerra com o Edito de Ciro, Rei dos Persas. O que deve faltar é leitor assíduo de tudo isso, gente que troque o futebol, a novela, a conversa fiada na mesa de bar pelas venturas e desventuras de Josafat, Ezequias e Jeroboão. Você mesmo, será que já tinha ouvido falar dessa parte do Antigo Testamento? Por acaso já foi lá dar uma espiada? Só não espere o apuro poético do Cântico dos Cânticos, o consolo e a força dos Salmos, a sapiência dos Provérbios. De qualquer forma, são mais fáceis de entender que o Apocalipse, indecifrável enigma que desafia os teólogos. E por falar em Apocalipse, que anuncia o final dos tempos, o meu por hoje acabou.

RAMIFICANDO

Deitado na rede, após o almoço, estava naquele limbo entre o sono e um vago estado de vigília. Acima dele, a copa densa da árvore não conseguia filtrar todo o mormaço do dia.
As ramificações, do tronco para os galhos maiores, dos galhos maiores para os menores, e destes para outros raminhos minúsculos, despertou nele um paralelo com a própria vida. Refletia em como uma decisão, num dado ponto do tempo, faz o destino ir pra um lado ou pra outro completamente diverso. Os galhos maiores seriam as escolhas cruciais, que determinam os rumos mais importantes. Os menores, as conseqüências que deles derivam. Um esbarrão em alguém no supermercado e pronto - uma série de acontecimentos aparentemente banais vão se encadeando. E aquela garota na gôndola de cosméticos acaba mãe dos seus filhos.

Espantou uma mosca, se ajeitou melhor na rede e se pôs a pensar no que poderia ter sido e não foi. Feliz ou infelizmente.

Possibilidade 1: ao invés de sair de casa pra cursar Economia, ele fica morando lá mesmo. Lá, naquele fim de mundo onde nunca ninguém merecia ter nascido. Amarga um emprego no banco, depois abre uma loja de ferragens - que se transforma em disk comida árabe, franquia dos Correios e distribuidora de água mineral. Vai levando como pode e toma umas duas ou três todo final de tarde. Gosta de carros antigos, joga futebol de botão sozinho e será candidato outra vez a vereador. Não nega que deve, muito e a muita gente. Mas diz que paga quando puder.

Possibilidade 2: seguindo uma inclinação de infância, ele vai para o seminário em 1978. A avó exulta de alegria: que benção um sacerdote na família! Excessos no genuflexório o obrigam a uma operação no menisco do joelho esquerdo, três anos depois. Recuperado, abandona a vocação religiosa. Presta um concurso na antiga Light, e passa em sexto lugar. Solteirão, mora em onze cidades diferentes. Aposentou-se o ano passado e hoje toca uma pousadinha em Guarapari.

Possibilidade 3: sua cega paixão pelo The Doors o leva, um dia, ao túmulo do Jim Morrison em Paris. No vôo de volta ao Brasil, senta-se ao lado de um enólogo da Real Companhia Velha, fabricante secular de vinho do Porto, em viagem ao Rio para visitar parentes. Bastam dez minutos para que se tornem amigos de infância. Trocam cartões e se despedem no aeroporto. O distraído lusitano deixa cair a carteira, bem recheada. Ele liga para o enólogo, dizendo que está com ela. A recompensa não tarda: um emprego em Portugal. "Aceitas, ó pá? Morarás numa linda quinta, serás meu braço direito e não terás despesa alguma". Ele topa. Conhece uma rapariga e, pouco tempo mais tarde, enche a quinta de miúdos (crianças, no português de Portugal). Todos os anos, nas férias, ele vai para o Brasil. Fátima, a esposa, fica. Para cuidar dos meninos e degustar o enólogo.

Possibilidade 4: Aquele galho (sem trocadilhos) dos tempos de colégio vira namoro e depois casamento. O que seria terrível: a Gracinha ficou gorda e (mais uma vez, sem trocadilhos) perdeu completamente a graça. Sem falar nos cinco meninos que ela teve. Tá certo que se casou com um crente, que não admitia anticoncepcional. Casada com ele, talvez tivesse um filho só, continuasse o balé no conservatório e mantivesse, ainda por uma boa década, toda aquela saúde que fez sua fama na cidade e adjacências. É, podia ser. Podia, só que não foi assim. Vamos pra próxima.

Possibilidade 5 (tão bem-arranjada quanto inverossímil): as dezenas 02 - 15 - 16 - 34 - 38 - 49 , a mesma fezinha que fazia há anos, finalmente sairiam numa Sena Acumulada. A bolada seria grande e todinha dele. Ganharia mundo e poderia muito bem estar agora numa tabacaria em Gênova. No lobby de um hotel em Bruxelas. Caminhando por Beirute e ouvindo Mozart no disc-man. Ou então, já desapegado do dinheiro, aprendendo meditação em Nova Dheli. Poderia estar em qualquer lugar. Menos ali, às quinze pra uma da tarde, olhando feito bobo para a copa de um flamboyant.
Possibilidade 6...

ABBEY ROAD

LADO 1

- Vou começar bem fácil, depois a gente vai esquentando.
- Manda.
- Faixa dois do Let it Be?
- Dig a Pony.
- Quantas músicas tem o Álbum Branco?
- Trinta.
- Qual o fotógrafo da capa do Rubber Soul?
- Robert Freeman.
- Quem era a Martha, da música Martha My dear?
- A cadela do Paul McCartney.
- Quem inspirou Something?
- Pattie Boyd.
- O que Tia Mimi disse para John Lennon, quando ele comprou a primeira guitarra?
- "Você nunca vai ganhar a vida com isso".

Não tinha jeito, ele sabia tudo. Era capaz de dizer nome completo e endereço dos avós da Barbara Bach, mulher do Ringo.
Gabava-se de conhecer e catalogar, num caderninho surrado com o selo da Apple na capa, todas as mensagens cifradas e alusões a drogas do Revolver e do Sargeant Peppers. As bem manjadas e as que ele, sozinho, jurava ter descoberto. Sabia também que Paul estava vivo, e bem vivo. Ele mesmo o tinha visto num show em 1990 no Maracanã. Ainda assim conhecia 72 pistas que indicavam o contrário.

Tal pai, tal filho. E o menino, de 8 anos, ia pelo mesmo caminho.

- Quanto é 64 dividido por 16?
- Four. Como os Beatles.
- A capital da Inglaterra?
- Londres, uma cidade que fica perto de Liverpool.
- Dê um exemplo de sujeito simples.
- George Harrison.
- E de sujeito composto?
- Lennon & McCartney.


Dos discos todos, o favorito era Abbey Road - o célebre álbum com os quatro na rua homônima, passando pela faixa de pedestres. Se além de tocar o seu Abbey Road falasse, teria muito o que contar. Idas e vindas, festinhas na garagem, quedas nas mãos de bebuns, mudanças de casa. No tempo da faculdade, foi com ele pra república. Fiel escudeiro, trilha sonora de bons momentos e maus bocados. Era com ele que espantava o sono nas vésperas de prova e embalava os sonhos nas vésperas dos encontros. Cheio de estalinhos, riscado no começo do "Come Together" e no fim do "Golden Slumbers", era sempre ele que encabeçava a pilha, com o papelão da capa já esfarelando. Uma marca de copo, em cima da cabeça do Ringo, formava uma espécie de auréola. Santo Ringo, que soube segurar a onda nas brigas e ameaças de separação. De tanto entrar e sair do prato da vitrola, o furo foi abrindo, laceando, ficando quase oval. Lá pelos anos 80, quando tinha aquele 3 em 1 da National, cansou de gravar suas músicas em fitas cassete para os amigos. Uma vez foi de empréstimo pra casa de uma paquera. Voltou com uma carta perfumada dentro. Almíscar. O perfume durou pouco, a paquera menos ainda. Mas o velho Abbey continuou lá, igual aos Beatles - forever. Com o tempo, foi virando relíquia. Era a primeira prensagem brasileira, edição rara. Passou a guardá-lo no fundo do maleiro e comprou uma outra cópia mais recente. Em vinil, é claro.


LADO 2

Londres, 2004.
- Não é essa a rua, pai. A gente deve ter errado o caminho.
- Como não? Olha o mapa, é aqui mesmo. Abbey Road, aqui estamos nós!
Não queria dar o braço a torcer, mas a dúvida do menino era sua também.
Viu que o lendário fusca branco, placa 28 IF, estacionado à esquerda na foto da capa, não estava mais lá. Ele pensou alto:
- E nem poderia estar...
- Falou alguma coisa, pai?
- Nada não, filho.
Notou que faixa de segurança era igual a todas as que ele já tinha visto. Que quase nada restava daquele cenário mítico. A maçaneta da porta do estúdio, que a Rita Lee lambeu com adoração devota, provavelmente já tinha sido várias vezes trocada. Com a capa do bolachão nas mãos, ele comparava a foto com aquilo que via agora. As árvores certamente deviam ser outras, o trânsito era mais intenso. O céu também não era azul como naquele agosto de 35 anos atrás. Tirou os sapatos, para sentir a textura do asfalto e alcançar o estado de graça que tanto ansiava. Estava lá, exatamente onde eles estiveram. Em frente ao estúdio onde gravaram quase toda a sua obra, e nada de atingir o nirvana. O coração não disparou, ele não suou frio, as pernas não tremeram. Percebeu que perto da sua casa existiam ruas mais parecidas com a Abbey Road do que a própria Abbey Road. Por alguns minutos ficou ali, parado, como que esperando uma resposta ao próprio desencanto. E deu-se conta que Abbey Road era uma rua que ele mesmo havia pavimentado, ligando os Beatles às suas vísceras.
Entregou a câmera para o filho e pediu que ele clicasse no momento em que atravessasse a rua. Esperaram que alguns carros passassem e fez o mesmo com o menino. Mas bem rápido, porque um bando de turistas barulhentos, trazidos por um guia de sobretudo marrom, já tomava conta de toda a faixa.