Wednesday, August 23, 2006

DOMINGO DE 71

No ar, Flávio Cavalcanti.

Ele era da época. Do Flávio da primeira temporada, aquele da TV Tupi e em preto e branco, transmitido ao vivo no domingo à noite e com a Márcia de Windsor, o Erlon Chaves e o Sérgio Bittencourt no júri. Sentado na espreguiçadeira, assistia ao programa tomando Coca-Cola e comendo sanduíche de pão Pullman (pão de forma só tinha o Pullman) com patê Bordon e salsichas do Frigor Eder. Pra comprar a Coca precisava levar o vasilhame, que alguns chamavam de casco. O empório vendia banha por quilo, azeitona a granel, galocha, fluido de isqueiro e tinha uma Filizola, daquelas de regular o peso manualmente. Ficava a duas quadras de casa – a velha casa de grade baixinha e Coroas-de-Cristo no jardim. Mas mesmo assim ia de carro quando precisava de alguma coisa, um Opala último tipo, branco e de capota preta, com alavanca de câmbio na direção.

Precisava dormir mais cedo, ficou de segunda-época e nem havia decidido ainda se ia prestar Cecem, Cecea ou Mapofei quando terminasse o Científico. Na véspera, a brincadeira dançante. Abafou com o plataforma novo e a calça Far-West. Cuba libre e hi-fi a rodo, os pais da Ju tinham viajado pro litoral. Uma hippie bonitinha, com uma bata de anarruga, dando bola para ele a noite toda. Lá pelas tantas, o vizinho chamou o guarda-noturno que acionou a rádio-patrulha porque a vitrola estava com o volume muito alto.

Nossos comerciais, por favor. Ele estala os dedos e a câmera dá um zoom na mão.
O Flávio de smoking em seu púlpito, pondo e tirando os óculos de armação grossa, num cacoete irritante. Igual ao outro cara do júri, o tal do Clécius Ribeiro. Dizendo o que presta e o que não presta, com o dedo em riste, quebrando disco do Caetano e jogando no lixo, criando suspense, fazendo caras e bocas, promovendo a moral e os bons costumes, entrevistando viajantes de discos voadores.

Mamãe entra na sala.
- Esse maldito pequinês me arranha todo o sinteko. Vou ter que passar a enceradeira de novo. O cabelo armado de laquê e as anáguas à mostra enquanto se curva para recolher as bitucas de Minister do cinzeiro de cristal. Vai pra cozinha e volta pra pegar o prato com os farelos de pão e o copo vazio, enquanto o cuco anuncia 9 horas.

- Ai que horror esse homem metendo medo na gente. Deviam colocar novela no lugar dele. Domingo também podia ser dia de novela – ela dizia, arrumando o chumaço de bom-bril na antena da TV. Volta pra cozinha.

Tem comercial demais. Flávio é líder de audiência.
A pulguinha dançando iê-iê-iê, o pernilongo mordendo o meu nenê. Varig, Varig, Varig. Cinta modeladora Esbelt. Mappin, abre às oito, Mappin. Groselha vitaminada Milani, é uma delícia no lanche...

Um fusca tala larga, amarelo-gema, passa cantando pneu. Nessa velocidade, vai se arrebentar quando passar na tartaruga ou parar no sinaleiro.

Papai deixou o monóculo com a lembrança da viagem a Araxá em cima da lata de Duchen recheada de morango. O pequinês vem chegando, barulho das patinhas no assoalho do apartamento. Tomou banho hoje, cheira a talco e creolina.

Voltamos a apresentar... Flávio Cavalcanti.