Sunday, November 26, 2006

MORTOS DE RIR

O Willy não precisava ter ido tão cedo. Não precisava mesmo. Uma desatenção nossa e olha ele aí, finado. Ainda se tivesse procurado o fim – tomado veneno de rato, dado um tiro na têmpora, um enforcamentozinho. Mas assim, pego de surpresa, ver-se defunto da noite pro dia e a contragosto, não deve ter sido fácil.

Bom Willy, tão viciado em vida e de repente nessa situação. Em quase todas as sepulturas do cemitério, a estrelinha e a cruz, a data da morte e o dia do nascimento. Com estrela você combina, mas cruz não é o seu estilo.

Prometo que, tão logo o padre encomende sua carcaça, cairei fora desse latifúndio de esqueletos e entrarei no bar mais próximo para beber à nossa saúde. À minha aqui embaixo e à sua aí em cima, seu desalmado. Embora beba quase nunca, farei isso por você.

Aguardo, sua besta, você numa noite dessas pra me puxar as pernas, fazendo gracejo das coisas sagradas. O céu nunca mais será o mesmo depois da chegada de “Aero Willy”, o querubim gozador. Tô até vendo você tentando empurrar uma rifa pra cima de São Pedro ou convencendo Santo Expedito a ser seu fiador numa confortável nuvem de dois dormitórios.

Quero que fique em relevo no mármore branco e no granito preto desses túmulos um pouco dos melhores momentos que tivemos. Um dia, querendo ou não, a vida vai me mover um processo de desapropriação e virei também morar por essas bandas. Seremos vizinhos de novo, como éramos de rua.

Agora é essa serra azulada circundando o campo santo. Deixar você assim desamparado, no meio de tão desanimadas companhias, é de cortar o coração. Sinto um espírito me soprando ao ouvido: “escreve aí no seu texto pra cuidarem mais da gente. Só lembram que a gente existe dia 2 de novembro, isso é uma desumanidade”. É justo. Inexistente também existe. Não é porque morreu que deixou de merecer consideração.

Assim como os vermes daqui a uns dias avançarão com menos apetite sobre os seus restos, as lembranças suas também irão perdendo o brilho e a nitidez, sei disso. Sei do inevitável disso. E deixo subirem à mente as pipas todas que soltamos e milhões de bolhas de sabão, da época em que a gente tinha o tamanho dos anjinhos tocadores de trombeta, iguais a esses da tumba aqui do lado.

- Acorda aí, palhaço. Que cara de sonso é essa...
- Willy, é você? Eu tava sonhando ou é você que veio me buscar?
- Dá um cigarro, vai. Anda.
- Tá, mas primeiro me conta o que é que está acontecendo.
- Calma, tudo a seu tempo. E tempo a gente tem de sobra daqui pra frente.

Caímos na gargalhada. Acesso de riso no cemitério, coisa mais sem cabimento. Rimos tanto que apagamos as velas com as nossas risadas. Ao fundo, a trilha de Nino Rota para “Oito e Meio”. O coveiro passa por nós, mede a dupla de cima a baixo e faz um “tsc-tsc” de desaprovação.

Sunday, November 19, 2006

MANIFESTO PELA VOLTA DO TEMPO

O sujeito que assina este mal-arrumado libelo, em nome de toda a humanidade (à exceção talvez dos anciãos com mais de 100, cheios de saúde e paradoxalmente fartos de viver), vem a público exigir que o tempo volte o mais rápido que puder. E que fique claro que não me refiro à volta no tempo; o que reivindico é o retorno do próprio tempo, calmo e humilde, à vida das pessoas.

É espantoso como tudo, há uns poucos anos, levava muito mais tempo para ser feito. E quanto mais vagaroso era o processo, mais tempo, estranhamente, sobrava pro cidadão.

Criava-se o porco no quintal. Matava-se o bicho. Jogava-se água fervente sobre o pêlo, a ser raspado na navalha. Abria-se a barrigada, separava-se as partes, temperava-se e deixava-se da noite para o dia mergulhado em marinada. Providenciava-se a lenha, acendia-se o fogo, cozinhava-se lentamente e degustava-se mais lentamente ainda. Era um tempo de sobra que não acabava nunca mais, de enjoar de fazer nada. De botar cadeira na calçada, chamar o vizinho pra uma breja e fomentar o diz-que-diz-que. O tempo era artigo barato, era preciso arrumar um jeito de se livrar dele. De matá-lo de alguma forma antes que ele matasse a todos de tédio. Tempo havia para debruçar na janela, jogar paciência, montar quebra-cabeça. Fazia-se a sesta, lia-se pela satisfação de ler, não pela urgência de manter-se up-to-date.

Voltando à feijoada, dessa vez à rala, insípida e inodora versão de hoje – em lata e aquecida no microondas. Não presta-se atenção no que se está comendo, pois no tempo em que se engole a gororoba ao molho de flavorizantes vê-se a TV, atende-se ao celular, confere-se o extrato, pensa-se nos termos do relatório a ser entregue o mais tardar às 12h30. E são 12h20, meu Deus do céu.

Se aqui é assim, imagine lá, do outro lado do mundo. Valorizar o tempo é com os japoneses. Ninguém tem know-how mais apurado. Por algum mecanismo ancestral, sabem os nipônicos desde tenra idade que tempo é recurso não-renovável, e conseqüentemente precisam consumi-lo da mais produtiva maneira. Lá na placenta, enquanto espera ficar pronto pra vir ao mundo, o japonesinho deve aproveitar o líquido amniótico pra cultivar algum legume hidropônico. Ou já reserva aquela água que o rodeia pra abrir sua lavanderia quando nascer. Talvez ache oportuno estudar a anatomia da mãe e já ir se afiando para o vestibular. Pelo menos não vai zerar em biologia...

Melhor ainda que voltar, amigo tempo, seria ver você parado. Isso mesmo. Nem correr, nem andar, nem se arrastar. Simplesmente parar, perder a função de tempo e eternizar-nos a todos.

E vamos ficar por aqui, porque o tempo do leitor é curto e seria uma lástima continuar a desperdiçá-lo. Ainda mais comigo.

Sunday, November 12, 2006

MADE IN CHINA

Guarda-chuva à prova d’água
Um avanço sem precedentes, fruto de 14 anos e meio de pesquisas e testes exaustivos na região da Manchúria.

Nikei Mouse
Idêntico ao camundongo orelhudo licenciado pela Disney, que custa uma fortuna por aí. Além de mais em conta, já vem com leptospirose.

Controlador Remoto de Vôo
Os profissionais que controlam o tráfego aéreo não precisarão mais estar fisicamente alocados em suas bases de operação. Nas suas casas, confortavelmente acomodados às suas redes e cadeiras-do-papai, eles poderão desempenhar suas tarefas com segurança e sem o stress típico dessa atividade. O artefato funciona com quatro pilhas médias. Embalagem com 29 mil pés, tamanho 41 e sem unha encravada.

Água do Rio Jordão (Jordan River Water)
Na verdade, ela não é proveniente do Rio Jordão, mas de um ribeirão próximo à cidade de Shangai, cuja água tem propriedades físico-químicas semelhantes à do famoso rio bíblico. Segundo Jing Ling Long, Gerente de Produto, “o que vale é a fé do crente”.

Respirador de UTI
Precisão e alta confiabilidade distingüem esse produto da concorrência. Possui um apito que avisa quando o presunto ficou pronto.

Comida Chinesa
Assim como os brasileiros não ingerem feijoada e acarajé todos os dias, também os chineses não se alimentam exclusivamente de yakisoba e rolinhos primavera. O chinês comum, ou seja, aquele igualzinho aos outros, come rotineiramente arroz, feijão, bife e batata frita. E é isso o que o consumidor encontra nesse lançamento, em caixas de 500g.

Grande Muralha de bolso
Miniatura em escala da única obra do engenho humano que pode ser vista do espaço a olho nu. Aparentemente essa muralhinha de resina não tem serventia determinada, o que nos autoriza afirmar que se trata de um artigo multiuso.

Rapadura
Concebida numa prisão de segurança máxima, por um chinês que pegou 20 anos de cana. A exemplo da similar nacional, ela é doce mas não é mole, não.

Negócio da China
Kit completo para montar sua loja de 1,99. Custa 1,99.

Caixão de defunto
Feito em isopor imitando madeira, sua constituição é mais frágil que as cestinhas de morango vendidas na beira da estrada. A grande vantagem é que, caso o defunto venha a despertar depois de enterrado, poderá libertar-se rapidamente de sua urna mortuária.

Moto-Serra
Produto ecologicamente correto. Ao contrário dos modelos conhecidos, que serram os troncos, essa apenas quebra o galho.

Fogão Meia-Boca
Depois dos congêneres de seis e quatro bocas, o mercado ganha agora essa versão desenvolvida especificamente para anões, pigmeus e velhinhos em fase de encolhimento. O consumo de gás, garante o fabricante, é reduzido pela metade.

Sacolinha de supermercado
Basta de esperar a sacolinha ficar cheia para arrebentar. Muito mais prática, essa já vem arrebentada, dispensando o penoso processo de enchimento.

Foto do Che
A mesma que ornamenta as paredes das repúblicas de estudantes e ilustra 97,3% das camisetas das feiras de artesanato. A única diferença são os olhos, ligeiramente puxados.

Vachina
Numa só aplicação, imuniza o indivíduo contra todos os males da humanidade. Em ampolas de 5, 10 e 15ml.

Mao Tsé Tang
Líder chinês em sucos concentrados de preparo instantâneo. Nos sabores mixirica mixuruca, uva-passa e macaúba.

Sunday, November 05, 2006

A LUNETA

Na embalagem havia um enorme splash, onde se lia: “Montagem fácil e rápida”. Bom, dois dias e duas noites não é tanto tempo assim. O suficiente para encaixar nos lugares certos as lentes, roldanas, parafusos, porcas e cilindros de diferentes calibres e tamanhos.

Custou mas valeu, telescópio e tripé montados. Agora, ao desfrute. Ao merecido desfrute - porque que de ferro, só a luneta. Marca Superrvision, zoom de 1600 vezes, nitidez absoluta.

Primeira parada. Uma enfermeira dando comida na boca de uma velhinha em uma cadeira de rodas. Ai, que estréia mais sem glamour. E a enfermeira era mais velha que a velhinha.

No apê ao lado, uma bruta discussão. O engraçado era ver apenas as bocas se mexendo, os braços gesticulando, os socos na mesa, os rompantes coléricos e não ouvir absolutamente nada. Pastelão de cinema mudo, só faltou torta na cara.

Vamos lá, meu povo, cadê a sem-vergonhice? Duas horas e quinze e nenhuma mulher sem sutiã passando do banheiro para o quarto. Nem uminha. Tá louco, era o caso de devolver pro fabricante. Telescópio que se preze não faz um papel assim.

Três andares acima, um cara solitário no sofá, o nó da gravata meio afrouxado, à frente de uma TV de plasma. A lente é poderosa, dá pra ver a programação que o sujeito está assistindo. A sala escura, ele zapeia. A luz do aparelho refletida em seu rosto se altera a cada mudança de canal. Enfia um dedo no nariz. Que nojo, não volto mais na sua casa, seu sem-educação. Isso são modos?

No quinto andar havia uma loira de tirar o fôlego, há tempos já a observava a olho nu. A vadia não saía do quarto, dando mole pro primeiro telescópio que se habilitasse. Mais que depressa, zoom máximo na dita cuja. Era loira mesmo, e seria perfeita se não fosse um pôster. Duplo azar: além da mulher ser de papel, o quarto com certeza era de macho. Castigo pouco é bobagem.

Na noite seguinte, a caçada continua. Ao mirar no décimo-sexto andar do Edifício Itapuã, sua luneta dá de cara com uma outra luneta apontando exatamente para ele. Sim, tinha certeza que era pra ele. O voyeur do voyeur, a perversão das perversões.
Assim que os olhares telescópicos se cruzaram, tentaram até fingir que não se viram. Uma luneta virou pra esquerda, outra pra direita, como se assobiassem, disfarçando.

Depois de umas dez janelas sem nada de interessante à vista, ele finalmente achou algo com que se entreter. Após um prolongado “Nooooooooooosssa!”, ali parou e ficou. Puxou até uma cadeira pra se acomodar melhor.

- Vai, vai, vai...
Uma voz feminina e muito familiar responde ao seu ouvido:
- Vai o que, Claudinho?

Era a esposa. Ô mulher pé de pluma. Quando deu pela presença, já estava no cangote. Mão na cintura, cobrando esclarecimento.

- Vai? Ah, sim. Vai logo, planeta, aparece logo, planeta...

- Planeta? Até onde eu saiba não tem planeta nenhum desse lado do céu. E mesmo se houvesse, esse prédio enorme aí em frente não ia deixar você ver nada.

- Nossa, é mesmo. Nem tinha reparado.

- Mãos ao alto, seu safado. Não mexe um milímetro nessa porcaria. Deixa eu ver o que você está vendo. Sai daí, sai daí!

Se aquilo era um planeta, só poderia ser Vênus. Um raro espécime do belo sexo, dessa vez de carne e osso, em trajes e poses que, digamos, acusavam claramente não tratar-se de uma freira.

- Sabe como é, testando o foco, querida...

E foi assim que, naquela noite, ele acabou vendo estrelas.