Sunday, April 23, 2006

PASTORAL

Pasta o verde da fazenda no amendoal dos teus olhos. Lavoro onírico, delírio que toma corpo e afronta o cansaço-cão. O trem da Mogiana vem chegando e descarrila ao topar com teus desvios. Bifurcadora de sinas, segues gestando tornados. O sol a pedir licença pra se pôr em tua figura. Não há átomo no cosmo que, ao pressentir tua passagem, não fique tomado de espanto e seja teu servo devoto.

Corações mirins aos pulos, arranhões nos cotovelos. Tábuas toscas que aprisionam os bezerros nos currais. Os olhares que na infância um ao outro nos lançamos, vejo agora com clareza, é a lã da ovelha polindo palmo a palmo esses alqueires.

Pois então me diga o que fazer com todo esse barro preso nas botas, as farpas todas desses mil arames, as carpas todas no azulado lago? E quanto aos vultos que se escondem nas mangueiras do pomar, assombrações que criamos nos idos de era uma vez?

O pensamento submerso no sereno reticente, bambeio as pernas, ferido. Ancinho gasto de recolher os escombros dos umbrais. É certo que em algum lugar a primavera aflora solta e desavergonhada. Talvez nós dois numa estação de águas, lívidos de cera e ávidos de ser no meio daquilo tudo que nos aconteceria.
Evoca, da tua parte, esse tempo de contornos indecisos, sem termo e grávido da gente. Guarda no recato do decote a lembrança do viver que não tivemos. Essa foto aqui no colo é reles bi-dimensão no véu da tarde esquecível. Não, não quero nunca o remorso pelo nada que ouviste, no que faltou te dizer. Ainda mais a essa altura, reféns amorfos que somos de um passado que não passa. Aguça o senso do sentir, e basta.

Persevero na imperícia, desembestado em mazelas, sem freios de praga em praga. Montado nesse alazão que a nada vai me levar, além dos parcos domínios de me saber e de te adivinhar. Resiste o nó de você no areião dos exílios. Que carícia na penugem das espáduas, cá dentro o vento te esculpe no mole mármore das nuvens. Marisas aos montes entram pelos tímpanos e reverberam nas entranhas. Eis agora a mesa posta com os frutos dessas paragens, que nascem e jazem escondidos nos cantos da tua boca. Deita-te sobre a música, deixa-te sonhar também.




Essa linha em branco aí em cima é a que falta ser escrita no evangelho de nós dois. Atira a primeira sílaba, espero que seja "sim", começa que eu acompanho.

Saturday, April 22, 2006

SUPERMERCADO VOLTE SEMPRE

Não tarda e chega de novo a hora dela: a compra de supermercado.

Lá vão os dois. No caminho, o marido vai pensando na série interminável de procedimentos à espera: da prateleira para o carrinho, do carrinho para o caixa, do caixa para o carrinho de novo (com tudo já nas sacolinhas), do carrinho para o porta-malas, do porta-malas para o carrinho do prédio, do carrinho do prédio para a despensa de casa. Haja saco e saquinho de supermercado. Aliás, esses sim, resistem a tudo. Se você colocar mais que uma pasta de dente em cada um, a alça arrebenta.

É assim há 20 anos, todo santo dia 15, a melhor data para a fatura do cartão. Multiplicando-se os 20 anos por 12, temos a fantástica cifra de 240 compras de mês no decorrer do período.

Chegaram. É claro que o carrinho deles tem a roda enguiçada, que fica puxando pra um lado. Enquanto está vazio, tudo bem, quase não dá pra notar o incômodo. Mas à medida que o carrinho vai enchendo, o manobrista vai se enchendo junto. Com o peso das compras, é uma ginástica mantê-lo alinhado.

Um carrinho vazio de supermercado nunca está vazio de tudo. Há sempre um raminho de brócolis esmagado, uma etiqueta de sutiã 54 e outras coisinhas do gênero, que podemos chamar de restos mortais da batalha anterior. Às vezes tem também a lista de compras da pessoa que usou o carrinho antes de você. Aquela listinha bem caseira, dobrada em quatro. Os ítens encontrados estão ticados ou riscados. Pode ser o contrário – o que está na lista é o que ainda tem em casa, pra lembrar de não comprar. Uma dica: se você estiver sem sua listinha pessoal, leia a do usuário anterior. Talvez você se lembre de alguma coisa que tinha esquecido.

Exemplo de lista típica, de autor anônimo:

Guardanapo – trazer 4 do + barato.
Pó de café – ñ comprar.
Bolacha de recheio – tem 2
Pipoca de microondas – pegar aquela do palhacinho, ñ lembro a marca.

E por aí vai. São todas mais ou menos assim.

O locutor anuncia uma oferta relâmpago. Ela lembra quando, em 1992, quase testemunhou o soterramento de uma velhinha num quiosque promocional de leite condensado. No empurra-empurra, entornaram a anciã no mar de latinhas, com as pernas pra cima e as anáguas à mostra.

Olha pra um lado, olha pro outro, ninguém está vendo. E ele devolve o Detefon Mata-Tudo na gôndola do grão-de-bico. Quem não faz isso? Mês passado ele encontrou um par de Havaianas tamanho 41 em cima de um filé de merluza, em oferta a 9,90 o quilo.

Por mais unido que seja, há o momento da separação do casal no supermercado, na seção de cosméticos. Ali a mulher vai passar pelo menos 45 minutos. Sabendo o tempo que vai perder, ele vai para aquele corredor perto das rações de cachorro, onde tem broca, estopa, cera automotiva e chave de fenda. É o habitat do macho de bermuda, camiseta regata, chinelão e barba por fazer. Enfim, um “amor” de homem.

Fim das compras, resta pegar a fila do caixa. Todas estão mais ou menos do mesmo tamanho, é preciso escolher uma. Meia hora depois eles percebem que é justamente essa uma que não anda. Todas as filas vão de vento em popa, menos a deles. É quando eles reparam no crachá da funcionária: “Em Treinamento”. Tá explicado. Azar, agora é tarde pra entrar em outra fila.
Enquanto um vai colocando as coisas na esteira, o outro vai embalando. Mas aí a patroa lembra: “Nossa, esqueci o rodo!”
Que legal. Nada mais prático pra embalar e pra enfiar depois dentro do carro. Lá vai o maridão correndo feito um fugitivo da polícia, atrás do rodo esquecido. Chega lá e se depara com 16 tipos de rodos diferentes: com cabo de madeira, sem cabo de madeira, de alumínio, com borracha grande, com borracha pequena, com duplo borrachão, com triplo borrachão e exclusiva fita deslizante. Pega o que parece mais apresentável e nem olha o preço – a fila está parada, esperando por ele.

Mais surpresas. A água sanitária vazou bem em cima da baguete. O coalho do queijo fresco encharcou o sabão em pó. A cartela de danoninho, que estava lá no fundo, foi impiedosamente massacrada por uma PET Xereta de 2 litros. Acionado o fiscal do estabelecimento, o marido explica a história, diz que não foi culpa dele. Em vão. Vai ter que pagar pelo que fez e que não vai comer. E o pior é que deu perda total, não se salvou uma colherinha do iogurte.

Na saída, cadê o carro? A3, C5, B4? Ficam zanzando a esmo pelo labirinto de automóveis. Encontrado o Corcelzinho, guardam as compras e chegam à cancela.

- Benhê, o cartão do estacionamento.
- Ué, pensei que estava com você...

Inspeção no porta-luvas, embaixo dos bancos, no pára-sol, nos bolsos, na bolsa...
Pensa que acabou? Imagina. É como diz o saquinho – “Volte Sempre”. Dia 15 do mês que vem tem mais.

Monday, April 10, 2006

MENSAGEM PARA VC, BILL.

Pois é, Bill. Se tem alguém que se DEL bem na vida, esse alguém é VC. Quem diria que ao ABRIR aquele pequeno negócio na garagem da sua HOME você iria chegar aonde chegou - o homem mais rico do mundo, cheio de PROPRIEDADES. É só dar um OUTLOOK em sua mansão pra perceber o UPGRADE. Nada MOUSE... Seu HISTÓRICO é realmente invejável.

Mas francamente, tem hora que dá vontade de jogar seu WINDOWS pela JANELA. Nosso ERRO foi crer que poderíamos confiar cegamente no seu SISTEMA OPERACIONAL. O fato é que estamos com o DISCO CHEIO dessa sua invenção.

O mundo está em suas mãos, Bill. Independente de ideologia: quem é ALINHADO À ESQUERDA, quem é ALINHADO À DIREITA e até mesmo os CENTRALIZADOS. Como JUSTIFICAR então essa FALHA GERAL NO MÓDULO DLL? Com tanto poder, dinheiro e tecnologia, será que não há E-MAIL de MINIMIZAR esse problema?

Você nos prometeu o EXCEL, mas vivemos num inferno. Acreditamos no seu WORD e agora estamos sem palavras. De TABELA, somos obrigados a conviver com uma FONTE inesgotável de ATUALIZAÇÕES. Caso contrário, o computador REINICIA antes mesmo de ligar.

Às vezes tento apelar para o meu Santo PROTETOR DE TELA. Mas ele me deixa ao Deus dará, olhando feito bobo para o PAPEL DE PAREDE. Outras vezes procuro desesperadamente LOCALIZAR aquele ARQUIVO e nada. Nem pedindo AJUDA a São LOGIN para encontrar. Onde estará? Aí a gente dá um tempo e DOWNLOAD pra refrescar a MEMÓRIA. Não tem jeito. O DOCUMENTO está perdido. E perder um documento no Windows, Bill, é mil vezes pior que perder o RG, o CPF e a carteira de habilitação na rua.

Agora responda, Bill: me SALVAR COMO? Fico a ponto de EXECUTAR UMA OPERAÇÃO ILEGAL, utilizando programa pirata só de sacanagem, pra me vingar mesmo. Um amigo meu bem que tentou instalar um XP do camelódromo na máquina dele, mas na hora HDeu pau.

Enquanto isso, aguardamos a próxima aVERSÃO do seu programa. Com a nítida IMPRESSÃO de que ela será apenas um COPIAR e COLAR da versão anterior. A única diferença será o plantel de VÍRUS, que no mínimo deverá triplicar.

Isto posto, despeço-me jurando jamais adicioná-lo aos FAVORITOS. Espero que muito em breve possa lançar você, seus SOFTWARES e seus ASSISTENTES invasivos e imprestáveis à LIXEIRA. Esse sim, um utilitário altamente seguro e confiável.

P.S.: Nem tente me responder, pois estarei OFF-LINE. Pode desistir também de dar BUSCA na internet ou na lista telefônica, pois vou me RENOMEAR. Ou fazer um auto-BACKUP, para confundir e burlar a vigilância de seus controles e sistemas. É, vou dar um BOOT na máquina e pegar um ATALHO pra alguma praia deserta, que não tenha CONEXÃO com nada. Lá estarei em REDE, bebendo uma água de coco.

LÚCIA FOI PARA O CÉU

Era uma vez a recatada Lúcia, que farta de tudo abandonou o jogo. E após lançar-se de um penhasco próximo, deu consigo a flutuar e a atravessar paredes. Livre do carne e da gravidade, vestiu-se de luz e pôs-se a vagalumear calma e displicentemente. A chave do tempo nas mãos, todo o espaço de outros mundos a percorrer como quisesse. Via-se agora como sonhava ver-se, intercambiando entre as várias Lúcias dos dias felizes. Via-se Láctea universo afora. Via-se as muitas que fora outrora. Mamava sôfrega o leite da mãe, pulava sela e batia cara contando até cem – lá vou eu!

E lá foi a Lúcia. Já foi tarde da imundície desses dias mutilantes. Um bilhete só de ida com destino a never more. Ao entrar no vagão do itinerário eterno, pegou uma janelinha na poltrona nove. Desceu na estação seguinte, onde topou com a Lúcia em seu vestido verde de babados brancos. Recém-entrada nos dezesseis, recende a sândalo e odor de fêmea. Lúcia olhando Lúcia, encontram-se finalmente, estranham-se mutuamente.

Embarque para Saturno na plataforma 2. Lúcia cósmica cintila, enlaçada em seus anéis. Alianças várias, de formatura, de noivado e casamento. Aceita, Lúcia, esse sujeito como esposo? Pode ser que sim, pode ser que não. Provavelmente talvez. Núpcias de Lúcia. Gastando a vida em meio a trapos, afazeres e panelas de pressão. Faz as unhas, tinge o cabelo, fuma, ganha filhos e olheiras. Os dias voaram, os meses voaram, os anos voaram e Lúcia também. É, agora Lúcia voa para onde bem entender. A senhora Lúcia, senhora de si.