Sunday, February 26, 2006

OBITUÁRIO CARNAVALESCO

DIÓGENES CAPISTRANO MATOS
Aos 41, assassinado. Enquanto a orquestra tocava o trecho “Vou beijar-te agora e não me leve a mal, hoje é carnaval”, o folião agarrou no meio do salão uma mulher casada. A mulher até que não levou a mal. Quem levou a mal mesmo foi o marido, que o transformou em cinzas antes da quarta-feira.


JOSÉ DIAS P. RIBEIRO (ZEZÉ)
Aos 24, de mal súbito, quando ia cortar o cabelo. Conhecidos alegam que a causa mortis foi desgosto, devido a insinuações sobre sua suposta homossexualidade, que vem de outros carnavais (não a homossexualidade, mas as insinuações).


ARNESTO RUBINATO
Aos 59, de suicídio. Antes de matar-se escreveu um bilhete para a mulher, que dizia “Não posso ficar nem mais um minuto com você”. Foi enterrado às onze, no cemitério do Jaçanã. Deixou saudosa a maloca.


CAMÉLIA DA CRUZ
Aos 78, de fraturas múltiplas. A vítima caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu. Deixa marido, filhos, sobrinhos, netos e uma amiga inconsolável, a jardineira.


GENERAL ANTONIO FELISBINO DE ANDRADE
Aos 67, a serviço da pátria. Após combater heroicamente numa batalha de confete, foi encontrado na sarjeta com a boca cheia do produto. Sepultado com honras militares, teve seu caixão envolto por uma bandeira branca.


PEDRO SILVESTRE RONQUIN
Aos 60, mordido por uma serpentina venenosa. Enfermeiros tentaram reanimá-lo com a inalação de um aromatizador de ambientes, sem sucesso.


JOVALDO ROSSETTO (VULGO DUM-DUM)
Aos 28, atropelado por um carro alegórico na dispersão do desfile das escolas do grupo especial. O indivíduo veio a óbito após confusão causada por uma briga feia entre o Rei Momo e a Terça-Feira Gorda.


CHIQUITA BACANA
Aos 66, de tombo. Testemunhas afirmam tê-la visto escorregando numa casca de banana nanica.


ANDRÉ FERREIRA VASQUEZ
Aos 97, queimado. Seu coração amanheceu pegando fogo, fogo, fogo! O corpo de bombeiros foi acionado, porém o moribundo não teve tempo de ver a Mangueira entrar.


RUBIÃO VICENTE DE RAMOS VEIGA
Aos 70, vítima de assalto. Ao ouvir o bandido dizer: “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí!”, ele teria respondido que não ia dar, não ia dar não. Deu no que deu.


GEORGE BUSH
Aos 61, enforcado em um cordão de foliões. Para decepção dos populares que cercavam o corpo, constatou-se que se tratava de um desconhecido com uma máscara do Bush, comprada na rodoviária. Foi enterrado como indigente.


TATIANA NEVSKY
Aos 4, de inanição, na matinê infantil. A garotinha gritava “Mamãe, eu quero mamar”, mas a genitora, empolgada com o ziriguidum, não conseguia ouvir seus berros.


DENIVALDO GALVÃO DE MORAES ANTIBES
Aos 35, de hemorragia. Foi atingido por um bloco, enquanto sambava próximo a uma obra. Entre os componentes do bloco foram encontrados areia, cimento, pedra e ferro. Detidos para averiguações, todos negaram veementemente qualquer envolvimento com o caso.


JOÃOZINHO
Aos 30, bicado por um beija-flor.

31 DE DEZEMBRO DE 1999 (EPISÓDIO QUASE AUTOBIOGRÁFICO)

Um dia de outono de 1981, último ano do colégio. Estava sentado na minha carteira, fingindo que não prestava atenção no pacto que ali, ao meu lado, se selava. Lá na frente, o professor de matemática falava para as paredes.

- Fica combinado, então. Nós cinco.
- Aconteça o que acontecer, tem que estar todo mundo lá.
- Tá tão longe isso, gente. Esse dia não vai chegar nunca, vocês não se tocam, não? Tanta coisa mais importante pra pensar... o vestibular, a faculdade. E depois tem outra, a gente vai continuar junto.
- Quem garante? Tudo pode mudar, de uma hora pra outra. Mais cedo ou mais tarde, vai cada um pra um canto.
- Tudo bem, só que até lá estaremos no século 21. De onde a gente estiver, vai bastar apertar um botãozinho e fazer o teletransporte para a pracinha. Tranqüilo, pessoal.
- E se eu já tiver casado, com um monte de filhos...
- Não, não. Tem que vir sozinho.
- É, nada de família junto. Só a gente mesmo, esposa não é da turma.
- Que jeito, meu? Que mulher vai aceitar que você passe a virada do milênio com quatro barbados ao invés de ficar com a família? E quatro barbados carecas, porque até lá...
- Bom, por mim, tá feito.
- Eu também topo. Pode redigir uma ata e botar meu nome que eu assino.

Eles cinco, a panelinha inseparável, estavam tramando de se encontrarem à meia noite do dia 31 de dezembro de 1999, na praça do coreto. Passagem de ano, de década, de século e de milênio (não exatamente de século e de milênio, mas a data era emblemática). Dezenove anos depois. Eu não conseguia imaginar aquele reencontro. Era amigo dos cinco, mas não era exatamente da turma. Tanto que eles não me incluíram no pacto.


(Coloque aí na sua telinha um efeito especial de passagem de tempo. Velhas casas de família viram prédios. Os Corcéis, Opalas e Brasílias agora são Vectras, Fiestas e Golfs. A imagem em sépia fica colorida. E aparece aquele texto bem manjado no rodapé do vídeo: “19 anos depois”...)

Por nada nesse mundo eu poderia perder aquela cena. Queria assistir de longe, ver sem ser visto, estava de bicão naquela festa privê. Depois do encontro me juntaria a eles. A hora da virada chegou e me pegou sozinho ali na praça. Meia-noite, nada. Meia-noite e meia, nada. Ninguém apareceu. Só eu, a testemunha intrometida, o que não era pra estar lá. Decidi ficar mais uns cinco minutos, até dar uma da manhã e ter certeza de que não apareceria mesmo ninguém. Era horário de verão. Será que estava valendo o horário antigo? Se fosse assim a coisa tinha acontecido às onze da noite e talvez já tivessem ido embora. Foi quando surgiu um rapazinho, de jeans e camiseta branca, meio ofegante. Sentou-se num dos bancos, olhou para os lados, consultou o relógio, esperou. Os cabelos longos e lisos, os olhos amendoados, as pernas finas. Claro, era o Tavito. Em qualquer lugar do mundo o reconheceria.

Saí do meu posto de observação e fui até ele.
- Tavito!
-
Não era possível, o tempo não tinha passado pra ele. A mesma cara, nenhuma ruga, nenhum cabelo branco. O Tavito me olhava com um jeito de quem não estava entendendo nada.
- Sou o filho dele. Meu pai morreu quando eu era criança. Deixou uma carta lacrada, que só deveria ser aberta ontem, dizendo que tinha um encontro marcado com seus melhores amigos hoje à meia-noite, aqui nesta praça. Se por algum motivo ele não pudesse vir, eu deveria representá-lo. O senhor deve ser um deles...

Logo ele, o Tavito. Dos cinco, o mais descrente do pacto. O único a honrá-lo, mesmo morto.

- E os outros três, já foram?

Sentei ao seu lado e expliquei a história e minha condição de testemunha. Depois ficamos ali, madrugada adentro, à espera dos quatro ausentes. Uns fogos estouravam ao longe, carros passavam pela pracinha buzinando, grupos de branco iam em direção ao clube. Falei da linha do trem, que antes dele nascer cortava a cidade de fora a fora. Comentei como o pai dele era bom de natação, os campeonatos que ganhou, o sucesso que fazia com a mulherada. Os porres que tomamos, os aventais brancos que vestíamos na escola. Ele me contou do acidente de avião, do trauma da perda, do segundo casamento da mãe. Eu escutava, mas não ouvia. Divagava, vendo em sua boca os lábios do pai dele me sussurrando as respostas da prova de biologia.

Friday, February 10, 2006

A FALTA QUE O CELULAR NÃO FAZ

Verdade seja dita, logo de cara: felizes os que não usam telefone celular. São poucos, e dentre eles eu racionalmente me incluo, graças a Deus. Pelo menos por enquanto. Sei que mais cedo ou mais tarde serei obrigado a me render, já que é para ele que aponta a chamada convergência das mídias – voz, MP3, câmera digital, TV, internet e sabe-se lá o que mais. Mas quero adiar esse dia o máximo possível.

Que paranóia insensata essa de estar ligado 24 horas, de prontidão, encontrável e acessível custe o que custar. Prefiro ser eremita, ter paradeiro desconhecido dentro dessa estranha teia de seres chipados. Os dependentes da maquininha costumam dizer: "como eu conseguia viver sem isso?". Ao que eu respondo: como é possível viver com isso?

Quando o celular toca, nunca é aquele cara dizendo que vai pagar a grana que está te devendo. Jamais é aquele amor platônico que, cansado de esperar sua declaração, resolveu tomar a iniciativa. Tampouco é aquela pessoa querida que, desinteressadamente, quer apenas saber como é que você está, se precisa de alguma coisa. Sempre é um chato de galocha te cobrando um trabalho, lembrando prazos e urgências, querendo a mãozinha que você ficou de dar.

Lembro bem dos primeiros modelos. Uma rapadura de meio quilo, que quando em funcionamento parecia uma maquete da pista de dança dos "Embalos de Sábado à noite", com uma luz verde-limão brilhando forte no teclado. Alguns lembravam o telefone-sapato do Agente 86.

Mimo dos abastados, quando surgiu o celular era preso ao cinto, de maneira que ficasse bem à mostra. Como um abcesso exposto de propósito. Era um tal de empinar pra frente a barriga, deixar o paletó aberto, só pra expor a novidade. E o cidadão, ao atender a chamada, nunca ficava quieto. Fazia questão de andar de um lado pro outro, como que frisando o fato do telefone ser móvel. Morram de inveja, pobres de uma figa.

Já hoje acontece o contrário. A rapadura se reduziu a porta-jóias. O recém-celulado faz de tudo pra mostrar a todo mundo o quanto o modelo dele não chama a atenção. Ganha a guerrinha de vaidades quem, a olhos vistos, deixar o seu celular imperceptível.

Dentro desta nova classe de maquininhas que primam pela discrição, destacam-se as que vibram ao invés de tocar. Há poucas semanas conversava com um amigo, num restaurante. Ele foi ao toalete e o seu celular com vibra-call deu sinal de vida. Começou a tremer e a se mover feito uma barata tonta pela mesa, como se estivesse em transe mediúnico. Se não sou eu a barrar sua desnorteada trajetória, ele teria se espatifado (para minha íntima satisfação).

Ai de quem se fiar na autonomia que um telefone celular teoricamente oferece. A despeito da proibição, quase todo mundo o utiliza em trânsito. O usuário está rodando por uma estrada com a coisa na orelha, passa por uma montanha ou uma baixada na pista e é o que basta: já não escuta mais nada, e nada do que ele disser será ouvido. Anda mais um tanto e sai fora da área de cobertura. Além disso tem que falar pouco, se não a bateria acaba. Chegando em casa, o procedimento número 1 é dar mamadeira pro bichinho, ligando o carregador na tomada e o dito cujo no carregador. Se for pré-pago, dá-lhe crédito. Aí sim, está pronto pra ficar de novo ligadinho, a postos para o próximo sobressalto.

O pior é quem tem celular e usa como se fosse telefone fixo. Além de não aproveitar a portabilidade, que é o diferencial do negócio, ainda dá trabalho para os outros.
- Alô, celular do Toninho. Só que não é o Toninho, é o Celso.
- Ô, Toninho. Sou eu, rapaz. Agora deu pra fingir que não é você, é?
- Não, aqui não é o Toninho mesmo, é o amigo dele. Eu só atendi o celular. O Toninho precisou dar uma saída.
- Mas ele não levou o celular?
- Não. Se tivesse levado ele tinha atendido, né. É um problema, quando ele sai sempre esquece o celular aqui na mesa.
- Ah, então por favor, anota o meu telefone e pede pra ele ligar pra mim, pode ser?

E lá vai o trouxa servir de moleque de recado. Fora tudo isso, tem também os ringtones. Chatíssimos, muitos de extremo mau gosto, que imitam espirros, orgasmos femininos e até respiradores de UTI. Outra aporrinhação é o efeito picotado – aquelas perdas de sinal no meio da fala do indivíduo, deixando a mensagem incompreensível. Acrescente os controversos efeitos da radiação e, no meu caso específico, o fato de morar a 50 metros de uma antena de celular – sem alvará de funcionamento e frontalmente em desacordo com a lesgislação de telefonia móvel vigente em Campinas. Deu pra entender agora? Alô? Tá me ouvindo??