Sunday, October 30, 2005

MARCAS

O que será que faz o M do Mc Donalds, a curvinha da Nike, o jacarezinho da Lacoste serem o M do Mc Donalds, a curvinha da Nike e o jacarezinho da Lacoste? Na busca de uma resposta, homens de marketing divergirão de sociólogos. Que não necessariamente terão as mesmas convicções dos filósofos, cujos argumentos jamais convencerão os religiosos, que inspirados em seus dogmas travarão discussões acaloradas com os cientistas políticos. A celeuma se aprofundaria, ganharia a mídia e se transformaria num grande fórum de debates, certamente com o patrocínio da Coca-Cola, da Vivo ou da Volkswagen.

O fato é que as marcas estão aí, colossais e reluzentes, explícita ou subliminarmente a fincar suas bandeiras nas frágeis massas cinzentas.
Tenho um amigo, publicitário, que arranca todas as etiquetas visíveis de suas roupas. Entende ele que essa é uma forma de propaganda e, até onde sabe, jamais será remunerado pela veiculação. Então, tesoura nelas. Nem bem saem das lojas e as roupinhas de grife viram genérico. "Ainda se a roupa saísse de graça, vá lá, tudo bem. Até toparia a permuta" – diz ele. "Eles me dariam as calças, camisas e sapatos e eu sairia pra rua desfilando as marcas deles".

Tá certo que esse meu amigo é um tanto radical. Mas tão xiita quanto ele é aquele cara no extremo oposto, que compra a etiqueta e só depois é que repara no produto em volta dela. "Grifado" da cabeça aos piercings, o talzinho é um verdadeiro anúncio ambulante. Veste o que veste não pelo valor que atribui à indumentária, mas pelo status que supostamente darão a ele por se exibir com aquilo tudo. E lá vai o bacaninha dando um rolê pelos points da hora, se achando o rei da paçoca.

O poder da marca é um caso muito sério. Aí está o Branding - ciência que estuda a marca e sua dinâmica no relacionamento com o consumidor - que não me deixa mentir. E vale tudo para garantir que ela apareça e ganhe mercado. Até mesmo recorrer a obras-primas, que à revelia de seus autores acabam virando sinônimo de marca. O que será que Beethoven pensaria se soubesse que aquela curta e genial seqüência de notas, que alicerça sua Quinta Sinfonia, se transformaria no "pão pão pão pão" da Wickbold? Ou da sua "Pour Elise", comendo solta nas esperas telefônicas e nos caminhões de entrega de gás? Quando é que iria passar pela cabeça do autor de "O Sole Mio" que sua canção imortal viraria comercial do Cornetto? E por aí vai. "As Quatro Estrações", de Vivaldi, vendendo sabonete. O célebre "Aleluia" de Haendel, que já apregoou até remédio para prisão de ventre. A solene "Pompa e Circunstância", de Edward Elgar, por décadas reduzida à musiquinha do "Boa Noite Cinderela", antigo quadro do Programa Silvio Santos. A lista é interminável. Se bobear, "Águas de Março" daqui a pouco vira jingle de guarda-chuva, pra desespero do meu amigo xiita. Que, aliás, anda sumido. Deve estar desempregado.

TUDO SERÁ COMO SEMPRE

Sucedeu que ele acordou com aquela idéia na cabeça: fazer tudo diferente do que estava acostumado. Tirar a vidinha do piloto automático. Lembrou daquele famoso pressuposto da programação neurolingüística, que aprendeu num curso rápido sobre o assunto: SE VOCÊ CONTINUAR A FAZER O QUE VEM FAZENDO, VAI CONTINUAR A OBTER O QUE VEM OBTENDO. A afirmação era óbvia, tão óbvia que parecia estúpido levá-la a sério. Até que caiu a ficha. E ele resolveu que aquele era o dia da guinada.

Começou na cama mesmo. Absteve-se da interminável sessão de bocejos e espreguiçamentos e de um salto pôs-se de pé. Fez trinta flexões, bem mais que as cinco de costume. Inverteu a ordem dos remédios - primeiro o da pressão, depois o complexo B.

Escovou os dentes começando pelos do fundo e terminando pelos da frente, exatamente como nunca tinha feito. Não se barbeou. Vestiu um terno verde e uma gravata prateada. Sentou-se à mesa, na cadeira da outra ponta. Ao invés de colocar na xícara bastante leite e um pouquinho de café, pôs muito café e quase nada de leite. Se despediu da esposa com um beijo no rosto, e não na testa.

Quando saiu já ia fazendo o caminho de costume, mas a tempo pegou outro rumo.
Ligou o rádio do carro. Tirou da CBN e sintonizou num programa sertanejo. Parou no semáforo e dessa vez comprou as balinhas que o garoto ofereceu. Passou em frente à igreja e não fez o sinal da cruz. Estacionou o carro na vaga do chefe (ele nunca estava mesmo). Subiu pela escada, não ia se repetir tomando o elevador. Decidiu que não responderia nenhum e-mail, por isso nem abriu sua caixa de mensagens. Trocou o mouse pad, limpou o monitor com álcool, mudou o protetor de tela e as cores do windows.

Na hora do almoço, aproveitou para não almoçar. Foi ao cabeleireiro. Abriu a Veja no lugar da Caras. Folheou de trás pra frente. Pediu para o cabeleireiro repartir o cabelo do outro lado. Retornando ao trabalho, "matou" uma tia velha e disse que precisava ir ao velório em Barbacena. Foi à sauna, depois ao cinema. Nenhum drama de consciência ao fazer isso em plena terça. Voltou pra casa duas horas mais cedo que o costume. No horário de sempre se recusara a voltar. Antes, comprou rosas para a esposa. Abriu a porta e flagrou a mulher com o seu chefe, que calçava os seus chinelos e bebia o seu conhaque. Os dois ajoelhados no chão do quarto, levando chicotadas do vizinho do 206, travestido de mulher-gato.

Não fez ruído nenhum. Do mesmo jeito que entrou, saiu. Ia deixar tudo como estava. Caso contrário perderia a mulher, teria que arrumar outro emprego e sairia nos jornais como assassino de traveco. Voltou para a empresa. As flores deixou com a Laura, recepcionista. Com um cartãozinho discreto, confirmando o motel para depois das seis e meia. Como sempre.

AMANTE MANTIQUEIRA

Do meio da escada rolante, na grande cidade cinza, galopo mentalmente nesse azul esverdeado que é todo teu, Mantiqueira. Montanha acima, vou me encardindo com teu musgo, devasso tua vastidão, perdidamente me encontro em tuas veredas e cipoais. E já tão verde quanto és, me camuflo do mundo e me confundo contigo, no enlace fecundo entre o animal de mim e o vegetal de ti. Sigo extasiado com a pintura de teus crepúsculos, desvirginando lendas guardadas desde o Gênesis nas copas de tuas árvores. Trazidos por fresca aragem passam caboclos e curupiras, camafeus de sinhazinhas, rocas de negras velhas, ais de chibata e de gozo, a grande saga dos séculos que ao longo de tua extensão pudeste testemunhar.

Ouves agora esse eco? É toda a tua quietude aos berros dentro de mim. Mais um pouco e o sol a pino vai mudando teus matizes e o canto de teus pássaros. Abro as porteiras do tempo em teus nativos espaços, amasso o barro de tuas trilhas, sobrevôo esses mares de morros que começam não sei onde pra acabar em nunca mais. Tuas termas de extintos vulcões, o enxofre a exalar de tuas entranhas. Reconheço minhas veias nos veios de tuas rochas. Me revelas calmamente cada um dos teus segredos. As Pratas de tuas Águas, as Caldas de teus Poços, a tua tão Boa Vista. Me falas dos milhões de anos que levaste na feitura disso tudo. Da paciência que tiveste, das metamorfoses que sofreste, do quanto que esperaste para me ver assim, rendido aos teus encantos. Me contas histórias antiqüíssimas, gravadas em xistos, calcários e granitos, num dialeto ancestral só partilhado por nós dois. Me inicias em teus saberes e teus sabores, me mostras picadas abertas por bandeirantes atrás do ouro das Gerais. Me escancaras despudoradamente as jazidas de teus minérios. Teus urânios, que enriquecidos te empobrecem. Tuas fontes radioativas, tão indefesas e tão vítimas da cobiça extrativista. Me banhas maternalmente em tuas cascatas, me ensinas que é por causa delas que teu nome é "Serra que Chora", em tupi-guarani.

Mas o que me revelas é quase nada diante daquilo que escondes. O insondável que há por trás de tuas neblinas - uma interrogação que, mesmo fluida, é tão pesada como o ferro que produzes. Porque és, Mantiqueira, quinhentos quilômetros de mistério. Guardas em tuas nascentes o código genético da Terra, sentiste em teu manto silvestre o dedo do Criador. Ele, que te concebeu mulher, de encostas sinuosas e insinuantes para propositadamente seduzir os homens.

Wednesday, October 05, 2005

EM QUE POSSO AJUDÁ-LO?

I

- O senhor vai me desculpar, mas sem o carimbo do Teixeira não tem jeito.
- E o Teixeira não está?
- Não.
- E o carimbo dele?
- O senhor me respeite. Olha o desacato ao servidor...
- Vai me dizer que o Teixeira leva o carimbo quando sai da repartição? Olha só, tem um carrossel lotado de carimbos aí do seu lado. Será que o do Teixeira não está aí, não?...
- Bom, enquanto isso vamos vendo os outros documentos. Trouxe o DIRC atualizado da Paresp?
- DIRC da Paresp... DIRC da Paresp... Tá na mão. E quitado antes do vencimento.
- Só que tem uma coisa... esse adendo da minuta ainda não foi averbado na Junta.
- Não entendi.
- O Benê do guichê 11 vai explicar direitinho pro senhor. Mas já vou lhe adiantando que tem que voltar até o 8º Cartório e reconhecer de novo a firma do antigo proprietário. Essa aqui não vale mais. Então, é melhor fazer o seguinte: antes de ir pro guichê 11 o senhor vai até o terceiro andar e fala com a Wilma. Saindo do elevador, primeira à esquerda, primeira à direita, de novo à direita e o senhor vai dar de cara com uma salinha verde, que tem um bebedouro quebrado.
- Sei, debaixo de um calendário da Seicho-No-Iê. Estive lá na semana passada.
- Isso. É só pegar a senha e aguardar ser chamado.

II

- Eu vou lhe dar um protocolo da requisição. O senhor leva até o Denorf e solicita a emissão do Nada Consta da Delegacia Fazendária. Não demora muito, não.

III

- Bons antecedentes, ok... Certidão Negativa de Débito, ok... habite-se, registro do inventário, 2 fotos 3x4. Mas eu preciso também do requerimento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e os últimos cinco boletos do ISSQN, comprovando o recolhimento. É que antes da homologação do prontuário, o DPTS pede o formal de partilha em duas vias. Até julho do ano passado podia fazer por procuração, só que agora o cartório está exigindo a presença da pessoa.
- Mas ele mora em Muzambinho...

IV

- Aparentemente só estão faltando o número do PIS Pasep do inventariante e uma cópia frente e verso autenticada do ITBI pra poder dar baixa. Caso contrário não é possível correr com a papelada.
- Mas quando eu vim aqui da outra vez aquele senhor de óculos ali me disse que uma segunda via da...
- Não, não. De jeito maneira. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A petição tá certa, mas precisa constar uma ressalva prevendo o usufruto da viúva.
- E essa instrução normativa para unificação de cadastro?
- Isso aí pode levar embora porque não vai servir pra nada. O senhor me providencie um termo de responsabilidade, com assinatura de três testemunhas. É só disso que eu preciso, trazendo até segunda-feira pra mim tá bom. Agora, veja bem, isso aqui é a minha parte, entendeu? No guichê 14 vão informar ao senhor como dar entrada no pedido pra saber em qual jurisdição do CASP esse DERC deve ser encaminhado.

V

- Meu amigo, eu não estou autorizado a emitir o TCF sem a apresentação do canhoto do D.O.R. Além disso, olha só, tá faltando a rubrica do perito técnico. Outro dia mesmo apareceu um cidadão aqui com um caso parecido com o seu.
- Bom, resumindo...
- Só na Secretaria, das quinze e trinta às dezesseis e quarenta. E traga também um atestado de saúde.
- Ah, isso com certeza não precisa. Se eu não morri até agora correndo atrás disso tudo, é sinal que a minha saúde tá ótima.

Estava enganado, coitado. Cinco minutos depois, enquanto corria ofegante do guichê 7 para o 18, teve um mal súbito e morreu. O sub-escrevente adjunto adiantou-se e proclamou:

- Ninguém faz nada, ninguém toca no morto enquanto não sair o Alvará de Liberação do corpo. Mas já vou avisando que o Edmilson, que cuida disso, está de licença-prêmio e só volta daqui a seis dias.