Meu eu pequeno me chama para um passeio no tempo. Achava mesmo que vinha. Me deu a mão e saímos rumo ao ingênuo de nós.
É de manhã, tem escola. Entramos na sala de aula. Carteiras de dois lugares, com buracos para tinteiro. Alguns tacos soltando. As grandes cortinas, com o vento, pareciam velas abertas. A pasta com material tem guache, canetinhas hidrográficas Sylvapen, papel almaço, Desenhocop. Um cheiro forte de álcool vindo da sala do mimeógrafo. Cartilha Caminho Suave, rangido do giz na lousa. O sino: hora do recreio. Bala de leite Kids, lanche Mirabel, Merengue da Milktex. Alguns meninos brincando de pula-sela e lenço-atrás. Os mais velhos jogavam queimada.
Depois do colégio, voltamos pra casa. No quarto, os 18 volumes do Tesouro da Juventude. Revistas Recreio. Puff de vinil. Kikos marinhos. Dois bambis de pelúcia, empalhados e com olhos de vidro. Coleção Disquinho, cada um de uma cor, com histórias infantis, ao lado da Sonata portátil e dos livros com as Jóias dos Contos de Fada. Bolas de gude, verdes, azuis, rajadas. Telejogo. Botões de futebol com fotos dos jogadores. Bate-bate, que dava hematoma nas mãos e nos pulsos - diversão da mesma época do Vai-e-Vem, outra coqueluche entre os moleques.
Abro a porta do armário (com um adesivo "Brasil, ame-o ou deixe-o") e um mundo de coisas desaba em cima da gente. Kit "O Pequeno Químico", rádio galena, carteirinha do clube, robô a pilha, Mustang de fricção, cofrinho da caderneta de poupança Haspa. Uma bola de capotão número 2, meio murcha e com os gomos descorando, e outra Dente de Leite. Caleidoscópio com pontas de lápis de cor, confete que sobrou da matinê do ano passado, rolinhos de espoleta, molas que desciam escadas. Na parte das roupas, blusa cacharrel, camiseta Hang Ten, calça Gledson. Na sapateira, Kichute, Bamba, botinha com palmilha para pé chato. Ioiô de elástico e serragem. Caninhos de antena para as guerras de feijão cru. Xilofone da Hering. Miniaturas Matchbox, soldados e índios de forte apache. Estalinhos de salão. Embaixo da cama ficavam o Autorama do Emerson, os pés-de-pato e a prancha de isopor.
Seguimos pelo corredor. Ao final dele, numa mesinha art-nouveau, o telefone preto de baquelite. Um chumbo, com a marca Ericsson em letra manuscrita no disco. Os números das linhas só tinham quatro dígitos. Ao lado, um ventilador Bomclima com grades reguláveis. É quase meio dia e um aroma de bife acebolado se mistura ao da cera do assoalho.
A sala. Televisor Colorado RQ preto-e-branco, com seletor de canais manual e barulhento. Depois da Vila Sésamo vinha o Zorro, Flipper, Terra de Gigantes, Viagem ao fundo do mar. Na parte de baixo do vídeo ficavam passando, em caracteres, as cotações da bolsa de valores. Abrindo todos os programas de TV, o Certificado de Censura Federal.
Depois de cruzar a cozinha, chegamos ao quintal. Um alvo sem os dardos, cavalinho de pau, vasilhames de Coca-Cola Família, carrinho de rolemã, bambolë, Canguru da Estrela, Caloi Cross com carta de baralho na roda traseira, para imitar barulho de moto. Passamos horas ali, revirando cacarecos e lembranças.
A noite cai de repente, trazendo uma lua de cinema. Levo pra dentro o menino, cheio de cloro nos cabelos, os cotovelos esfolados e um brilho que só aos meninos é permitido ter nos olhos. Tira do short um pacotinho de gotas de pinho Alabarda e algumas figurinhas dos craques da seleção de 70. Pede que eu guarde pra ele. E o levanto até meu colo, afago sua cabeça e sinto sua pulsação. Nada ele diz, nem eu.
Voltamos os dois para o quarto. Joga-se exausto na cama, olha pro lado e se reconhece na foto sobre o criado-mudo. Me encara demoradamente e abre um sorriso largo, ignorando o que o tempo andava tramando pra ele.
Pedi pra que abrisse a boca: ainda tinha as amígdalas. Nenhuma obturação nos dentes. Nenhuma ruga na testa, nenhum assunto pendente pra atrapalhar o seu sono, nenhuma idéia do que gostaria de ser quando crescesse. Ainda faltava muito para a primeira namorada, o primeiro porre, a primeira noite fora de casa, a primeira história tola que se meteu a escrever. Ainda faltava quase tudo, e ele não queria perder nada.
- Agora vai dormir que está na hora. Amanhã você tem que acordar cedo.
- Amanhã é sábado, esqueceu?
- Tem razão, é mesmo. Então espero você às cinco pra gente ver "Os Waltons".