Querido sei lá quem, sangue do meu sangue, obra de minha co-autoria que leguei inadvertidamente à posteridade,
Espero que esta o encontre com saúde, se é que um dia irá encontrá-lo, e isso contando que você venha de fato a existir. Estava olhando umas fotos e de repente me pareceu interessante a possibilidade de comunicação entre mim, que há muito já estou morto, e você, que ainda está por nascer. São retratos da sua bisavó, desde os 3 meses até os 16 anos, idade atual dela. Estão em porta-retratos de bronze, que enchem 2 prateleiras do meu escritório. Aliás, você não imagina o que essa veneranda senhora grisalha, de ares matriarcais e que seguramente implica com tudo aí na sua casa, vem aprontando agora que é novinha. Só quer saber de ICQ, MSN, chat e bate-papo. Almoça e janta internet, algo que está para o seu cotidiano assim como o telégrafo está para o meu.
Talvez essas fotografias a que me refiro estejam aí no futuro, descoradas e quebradiças nos cantos, pegando mofo dentro de uma caixa de sapatos - embora essa seja uma forma de guardar recordações típica do século 20. Já os porta-retratos, é duvidoso que tenham atravessado gerações. Algum ascendente seu, mal intencionado ou mal das pernas, na certa há de ter transformado todo esse bronze em uns bons cobres.
Tenho 41 anos e são precisamente 23 horas e 17 minutos do dia 22 de julho de 2005. Os galos ainda cantam de manhã, 99,9% das pessoas têm que trabalhar duro pra sobreviver e até o momento não se têm provas definitivas da existência de seres extraterrestres. Muitos dos grandes dilemas da raça humana continuam insondáveis, como a vida após a morte, a influência dos duendes na pressão atmosférica e o que fez Ronaldinho amarelar na final da Copa de 98. Ainda não descobriram as curas da Aids e do câncer. Mesmo passados quatro anos, as pessoas guardam bem vivas as lembranças do atentado que derrubou as torres gêmeas de Nova York, em setembro de 2001. Bento XVI é Papa há poucos meses e tem cara de poucos amigos. O Brasil ferve com os escândalos de corrupção envolvendo o partido do atual presidente da república e uma imensa corja de deputados.
Outro assunto muito em voga ultimamente é a clonagem. Em larga escala, contudo, só existem as de cartão de crédito e placas de carro. Gerar clones com certeza é corriqueiro aí. As cidades todas devem ter lojas ou centros de clonagem, algumas até abertas 24 horas e com serviço de leva-e-traz. Aposto que nas casas de classe média proliferam forninhos que cozinham, assam, fritam, douram e clonam alimentos. Fico imaginando que maravilha pras donas de casa. Bife, por exemplo. É fazer uma vez e clonar pro ano todo. E se a moda pega isso vale pra tudo: Scotch 12 anos e caviar, inclusive. Uau! Expressão antiga essa, né? Até pra esse seu provecto tataravô isso soa velho.
É inverno, faz frio onde estou e escuto Os Tribalistas - um disco que, espero, possa desafiar as décadas e chegar também aos seus ouvidos. Quem sabe exista uma máquina aí em dois mil e oitenta e tanto, que viajando à velocidade da luz possa voltar ao passado e trazer você aqui, de presente ao meu momento. De repente você pode até escolher este instante em que escrevo pra fazer isso. A propósito, que plataforma terá a escrita no seu tempo? Talvez já existam mixers de palavras e frases, eletrodomésticos que processem livros inteiros e em estilos diversos num passe de mágica. Mas não tenho esperança, não. Quando garoto, imaginava o ano 2000 com as pessoas movidas a foguetinhos auto-propulsores e curtindo férias em Júpiter. Passamos por ele e nada de mais aconteceu, com exceção de algumas toneladas extras de fogos em Copacabana. Até o bug do milênio foi um fiasco, tão frustrante quanto a passagem do Cometa Halley, em 1986. O século 21 chegou e as roupas continuaram de pano, os carros continuaram saindo de fábrica com os motores a explosão da época de Henry Ford, o homem continuou sendo o que sempre foi: um tubo processador de cocô.
Vou ter que parar por aqui porque a campainha está tocando. Algo que agora não vai dar tempo de te explicar o que é. Ou melhor, o que era.