Desconheço cronista que não tenha feito da falta de assunto o assunto para uma crônica. No papel de aspirante a escrevinhador de algo que sirva, e para não fugir à regra, lanço mão do expediente. E elejo a crônica como o assunto dela mesma.
Ninguém sabe definir ao certo o que seja a crônica enquanto gênero literário. É meio terra de ninguém: não é história, não é poema, não é relato, não é dissertação, não é narração. Ao mesmo tempo, pode ser um pouco disso tudo. Pode ser até romance, já que o Gabriel García Márquez batizou um dos melhores de sua lavra com o título "Crônica de uma morte anunciada". Particularmente, nem a classificaria como literatura, com exceção das do Rubem Braga, as do Carlos Drummond e as do Stanislaw Ponte Preta, que alçaram o gênero à máxima dimensão. Literatura é coisa mais séria e pretensiosa, tem que ser de conto pra cima. Crônica é assunto do dia, sai hoje no jornal e amanhã embrulha peixe. Por mais sarcástica, bem humorada ou inteligente que seja, está fadada ao mais completo, inevitável e muitas vezes merecido esquecimento. Quando das boas, daquelas poucas com a virtude de levar o leitor à reflexão, seu efeito salutar sobre os neurônios é de no máximo dez minutos. Em que pese o inglório esforço do cronista, que chega à exaustão em seu burilamento - mais cortando palavras do que propriamente escrevendo. Quem lê alguma do Verissimo, por exemplo, tem a nítida impressão, pela leveza e fluidez do texto, de que ele escreveu tudo numa sentada. O que não deixa de ser verdade: uma sentada de horas e horas sem levantar o traseiro da cadeira.
Crônicas, como se sabe, também são algumas doenças. O Aurélio define-as como aquelas "de longa duração, por oposição às de manifestação aguda". Paradoxalmente, a de que falamos quase nunca é longa. E muitas crônicas são extremamente agudas, de uma ferocidade febril e palpitante. Se por um lado crônica é uma classificação de doença, o que não falta é doente por crônica. Aquele sujeito que abre o Estadão, a Folha, a Veja e vai direto ao Carlos Heitor Cony, ao João Ubaldo Ribeiro, ao Mário Prata. O mesmo Aurélio estabelece "croniqueiro" como sinônimo de cronista. Nada pessoal, mas o termo me parece pejorativo. E me lembrei, por semelhança vocabular, dos injustiçados "pianeiros" - heróis anônimos do início do século passado, que nos cinemas faziam fundo musical aos filmes mudos - assim chamados no intuito de segregá-los como casta inferior em relação aos pianistas de concerto.
Por incrível que pareça, tem crônica até na Bíblia. Pode acreditar. E olha que são dois livros: Crônicas I e Crônicas II, ambos de autor anônimo - embora estudiosos suponham ter sido o sacerdote Esdras o escriba das obras. Os livros das Crônicas são também chamados de Paralipômenos - palavra grega que significa Coisas Omitidas. O estilo é absolutamente factual, e abrange toda a história sagrada até o exílio babilônico. Grande parte da narrativa é descrição genealógica - fulano que gerou sicrano, que gerou beltrano. Começa por Adão e vai até a morte do rei Davi. O segundo livro tem início com Salomão e se encerra com o Edito de Ciro, Rei dos Persas. O que deve faltar é leitor assíduo de tudo isso, gente que troque o futebol, a novela, a conversa fiada na mesa de bar pelas venturas e desventuras de Josafat, Ezequias e Jeroboão. Você mesmo, será que já tinha ouvido falar dessa parte do Antigo Testamento? Por acaso já foi lá dar uma espiada? Só não espere o apuro poético do Cântico dos Cânticos, o consolo e a força dos Salmos, a sapiência dos Provérbios. De qualquer forma, são mais fáceis de entender que o Apocalipse, indecifrável enigma que desafia os teólogos. E por falar em Apocalipse, que anuncia o final dos tempos, o meu por hoje acabou.