Wednesday, December 21, 2005
O DIA D
De deixar de engolir sapos pra dizer cobras e lagartos. De lagartear enquanto todos se danam de trabalhar. De danar-se para o que os outros achem ou possam pensar. De esticar o raciocínio até atingir a ignorância. De ignorar o radar e a multa, quando ela chegar. De chegar em casa e no chuveiro esvair-se ralo abaixo, sem parar. De parar de andar sentido com a vida e buscar um sentido pra ela. De dizer a ela, a ele, a elas e a eles que agora infelizmente não é possível. De possibilitar-se novas possibilidades, e ver que dá pé fazer o que jamais passou pela cabeça. De encabeçar o abaixo-assinado, indignar-se, chamar a imprensa. De imprimir sua marca na mais alta das encostas, onde poucos alcançaram e ninguém possa tirar. De tirar o relógio do pulso e ter pulso para mandar às favas o prazo estourado. De estourar a boca do balão, cair matando e partir pra briga. De brigar com a obrigação e fazer as pazes com a paz. De apaziguar a ansiedade, baixar a guarda e abrir os braços. De abraçar causas perdidas. De perder e dormir sobre os louros da derrota. De derrotar quem resolve o que pode e o que não pode. De poder e arbitrar, ir além da dose habitual, pichar um muro, dormir sem pijama, não trancar as portas nem regar as plantas. De plantar a semente da discórdia, botar a pulga atrás da orelha, acender o pavio, tapar os ouvidos e sair correndo. De correr algum risco, curtir o frio na barriga, ver a morte de perto, desatar os nós e desatar a rir. De soltar a risada reprimida, censurada à mesa, proibida nas igrejas e velórios, condenável na escola, nas audiências públicas e salas de concerto. De consertar o ânimo alquebrado, o tédio que enferruja, o sifão da pia e a dobradiça da janela. De erguer a vidraça e açoitar o mofo de idos tempos. De sentir saudade de sentir saudade. Ou, melhor ainda, de não sentir saudade por não saber do que se trata. De tratar de ser o que sonhava ser quando crescesse. De crescer sem conhecer a dor do fogo, a picada da cobra, os receios, arrependimentos e limitações incapacitantes. De ser capaz de entreter sem ser chato ou cansativo. De cansar do cansaço e demiti-lo, por justa causa e sem aviso prévio. De previamente ir deixando pra depois. De manter adiado até segunda ordem. De ordenar ao sargento pra não bater continência. De tornar continente seu pequeno povoado. De povoar de duendes e fadas madrinhas a fria terra dos gigantes. De agigantar-se e soar como o piano de Horowitz, a guitarra de Hendrix, o trompete de Armstrong num final de tarde. De assistir o entardecer sem pressa do sol se pôr. De pôr os pingos nos is, passar a limpo, tirar a teima e, tudo isso feito, jazer abandonado num sofá Chesterfield. De abandonar o cigarro por enjoar do vício, não porque é preciso. De não precisar mais cortar as unhas, fazer a barba, retornar ao dentista, atualizar o antivírus, pagar as contas e a promessa. De prometer a si mesmo que, daqui pra frente, nunca mais. De nunca mais guardar pra amanhã o último pedaço de chocolate, já que o amanhã pode muito bem cismar de não chegar. De chegar ao cúmulo, despertar a ira e provocar o espanto. De se espantar consigo e com quem quer que seja. De deixar de.