Tuesday, December 20, 2005

ELE É O CARA. AINDA.

Sinistro como aquele dia, só a fachada do Dakota - o paquiderme gótico que em nada lembrava você e suas roupas brancas pela paz. Gente do mundo todo aos prantos na frente da sua casa, teimando em não acreditar. Foi muita areia pros meus 16 anos, cara. Ainda que a milhares de quilômetros do epicentro, e só acompanhando pela televisão, sacudiu muito a estrutura. O Lucas Mendes ali, todo encapotado no Central Park, até ele parecia não encontrar nexo no que estava narrando.

Sempre que se falava em Beatles Forever, pra mim pelo menos era pra valer. Eu cresci confiando cegamente nessa promessa de imortalidade. E sem mais nem menos, aquela sacanagem. Minha mãe foi quem me deu a notícia, na manhã do day after. Sabia do meu fanatismo, me levou pra um canto, pediu pra que eu sentasse, que tinha uma notícia triste. Vinte e cinco anos depois, cara, você continua fazendo os lonely hearts baterem descompassados. Yeah, yeah, yeah. A respiração suspensa e um choro difícil de conter, não mais por causa da sua morte, mas por sentir você mais vivo que antes de ser assassinado. Você chamando Julia, pedindo Help, são coisas que a gente ainda escuta em estado de graça e com os pêlos todos eriçados. Os que já beiram os 60 – que viram você surgir, brilhar e partir – ou a garotada de 15, que só agora está ouvindo falar de você.

Fica à vontade, Mr. John. Nem preciso dizer que a casa é sua, olha só quantos discos seus. Acenda o tipo de cigarro que quiser, sirva-se do meu uísque, toque o meu piano. Só não fica tão ansioso, cruzando e descruzando as pernas o tempo todo. Relax, man. Pode se esticar no sofá, vou ligar para o delivery e pedir uns sushis.

Você afirmava que Deus era uma invenção, e é possível que você tenha dado de cara com o nada depois daqueles quatro tiros. Mas talvez o fato de não-ser valha mais a pena do que continuar por aqui, vendo tudo tão oposto ao que você imaginou. É, porque não deram chance à paz coisa nenhuma. Nunca estivemos tão longe dela. A despeito de você ter deixado a CIA com o pé atrás, o Nixon de cabelo em pé, o Elvis enciumado. Apesar de ter apontado o caminho pros filhos desorientados da guerra fria. Você, cara, teve peito de devolver a medalha pra Rainha. Deu uma banana pro show business e os managers das gravadoras pra ficar fazendo pão, lavando o chão e ninando o Sean. Que absurdo, o babá-beatle. Onde é que ele quer chegar, o que é que ele quer dizer? É, meu, você precisou ser muito homem pra virar dono de casa.

Como dizia uma de suas últimas letras, “a vida é o que acontece com você enquanto está ocupado fazendo outros planos”. E os nossos planos, cara, são ainda mais tolos e mesquinhos do que em 1980. Junto com o adeus a você, um caminhão de utopias rolou ribanceira abaixo. É frustrante ver hoje a sua figura desvinculada da sua história. Da sua verdadeira história. O que se vê é você reduzido a botons e pôsteres, desde as rodoviárias até as galerias de arte – o John de terninho e bota, o psicodélico, o hippie barbudo, o combativo, o pacifista. Mas da sua mensagem, que é o mais importante, muito pouco se fala. Ficam na superfície, no guru a quem se deve adoração sem que se saiba o porquê.

É irônico e entediante encontrar, por essa época do ano, seus CDs dentro daqueles trenós de papelão nos hipermercados, ao lado da gôndola de panetones. A mídia faturando em cima da aura messiânica criada em torno de você, fazendo girar a engrenagem que financia a guerra que você combatia. Transmitem especiais em sua homenagem, celebram com fingido pesar a sua morte, transformam você num papai noel magro, o som ambiente dos shoppings mandando ver o seu “Happy Christmas”. Eles não entenderam nada. Pior: fingem que não entenderam.

Até, cara. Dá um abraço no George.