Que coisa mais chata amanhecer no domingo com chuva e frio fustigando a janela. Um dia desse jeito é meio perdido, mal resolvido e defeituoso, meteorológica e produtivamente falando. O que influi no meu humor. Melhor dizendo, no mau humor.
Tem quem goste, achando que dias assim convidam à introspecção, balanço da vida, essas coisas. Outros se sentem mais dispostos para o trabalho. Esse negócio de frio tem sim, seus poucos momentos compensadores. Quando se entra no banho quente ou debaixo das cobertas, é ótimo. Mas essas delícias fugazes não pagam as penas posteriores - de sair do banho tiritando, de pular da cama de má vontade e de espaçar, muito compreensivelmente, as ocasiões para a prática daquela milenar e prazerosa modalidade.
Que suplício tratar de piscina, lavar louça, regar planta. No circo, por exemplo. O vento a 80 por hora arriando a lona. Imagine a agonia dos faquires, na gélida cama de pregos. A responsabilidade dos trapezistas e atiradores de faca, que têm de manter a precisão a despeito das mãos trêmulas. Igualmente torturante é o inverno para as strippers de boate e os entregadores de pizza.
E limpar gaiola de passarinho? Primeiro tem que lavar no tanque aquele fundo de zinco, cheio de caca. Empedernido pelo vento impiedoso, o dejeto só sai com palha de aço ou espátula. Pior é quando você roeu todas as unhas na véspera, deixando as cutículas em carne viva. Aí sim, é gostoso mesmo. Isso quando não se depara com o bichinho seco, as patas pra cima, mortinho da silva.
Gosto de tomar um uísque no fim de semana. Não mais que uma dose - cavalar, é verdade - o suficiente pra relaxar sem ficar xarope. E uísque sem gelo, não dá. É mais uma triste limitação do inverno, essa estação odiosa.
Tendo que renunciar ao meu trago domingueiro, comecei a fuçar nuns álbuns de fotos, do começo dos 90. Umas férias onde estou de passageiro num barco, passeando pela baía de Camamu. Olho as fotos e, claro, acesso o registro correspondente na cabeça, ele existe, está lá. Porém é tão frio quanto o dia lá fora. O fato sobrevive em linhas gerais, mas sem as sensações correspondentes. A foto não me traz de volta a brisa no rosto, o barulho do motor da embarcação, o azulado da água, o que sentia e pensava naquele instante.E assim acontece com outras coisas. Passo em frente de uma casa onde morei por cinco anos. E nada, só um flash nebuloso e em preto e branco vem à mente, condensando meia década de rotina diária num impreciso borrão de lembranças. Em seguida bate aquele paradoxo existencial - viver pra quê, se o que se vive agora será esquecido daqui a pouco? Você comenta com um amigo sobre isso e ele vem com a máxima, presente em 10 entre 10 manuais de auto-ajuda: "viva intensamente cada momento, como se fosse o último. Preste atenção ao presente, sem se agarrar ao passado ou se preocupar com o futuro. Assim você estará mais receptivo a reter o que acontece agora".
Pior ainda é constatar que a sua memória recente também é quase uma retardada - incapaz de lembrar do que você almoçou ou jantou ontem.
Livros às centenas, filmes aos milhares. Passo nas locadoras e não os reconheço, nem pela caixinha e nem pelo conteúdo. Para mim são eternos lançamentos. O lado bom é que, se pego um filme que já vi, não fico com a sensação de que joguei dinheiro fora. Olho para a estante de livros, leio os títulos nas lombadas, sei que um dia os devorei a todos. Atenta e silenciosamente, a cada um deles dediquei horas e mais horas, dias e mais dias. Pra chegar agora e não lembrar de nada - nem da história, nem do assunto, nem dos nomes dos personagens, nem de coisa nenhuma. Dizem os psicólogos e neurologistas que é o consciente que não lembra, e que o subconsciente guarda tudo em detalhes. E é aí, inclusive, que eles entram com suas ferramentas e terapias. Penso: é a idade. Errado: aos 14 já era assim. Chego a aventar a hipótese de distúrbio cognitivo. Herança genética? Talvez. Meu avô estacionava o carro e esquecia os vidros abertos, a chave no contato e - inacreditável - o motor ligado.
Mas por que é que eu vim parar aqui mesmo? Sei lá. Esse frio deixa a gente meio assim, de miolo duro.
Tem quem goste, achando que dias assim convidam à introspecção, balanço da vida, essas coisas. Outros se sentem mais dispostos para o trabalho. Esse negócio de frio tem sim, seus poucos momentos compensadores. Quando se entra no banho quente ou debaixo das cobertas, é ótimo. Mas essas delícias fugazes não pagam as penas posteriores - de sair do banho tiritando, de pular da cama de má vontade e de espaçar, muito compreensivelmente, as ocasiões para a prática daquela milenar e prazerosa modalidade.
Que suplício tratar de piscina, lavar louça, regar planta. No circo, por exemplo. O vento a 80 por hora arriando a lona. Imagine a agonia dos faquires, na gélida cama de pregos. A responsabilidade dos trapezistas e atiradores de faca, que têm de manter a precisão a despeito das mãos trêmulas. Igualmente torturante é o inverno para as strippers de boate e os entregadores de pizza.
E limpar gaiola de passarinho? Primeiro tem que lavar no tanque aquele fundo de zinco, cheio de caca. Empedernido pelo vento impiedoso, o dejeto só sai com palha de aço ou espátula. Pior é quando você roeu todas as unhas na véspera, deixando as cutículas em carne viva. Aí sim, é gostoso mesmo. Isso quando não se depara com o bichinho seco, as patas pra cima, mortinho da silva.
Gosto de tomar um uísque no fim de semana. Não mais que uma dose - cavalar, é verdade - o suficiente pra relaxar sem ficar xarope. E uísque sem gelo, não dá. É mais uma triste limitação do inverno, essa estação odiosa.
Tendo que renunciar ao meu trago domingueiro, comecei a fuçar nuns álbuns de fotos, do começo dos 90. Umas férias onde estou de passageiro num barco, passeando pela baía de Camamu. Olho as fotos e, claro, acesso o registro correspondente na cabeça, ele existe, está lá. Porém é tão frio quanto o dia lá fora. O fato sobrevive em linhas gerais, mas sem as sensações correspondentes. A foto não me traz de volta a brisa no rosto, o barulho do motor da embarcação, o azulado da água, o que sentia e pensava naquele instante.E assim acontece com outras coisas. Passo em frente de uma casa onde morei por cinco anos. E nada, só um flash nebuloso e em preto e branco vem à mente, condensando meia década de rotina diária num impreciso borrão de lembranças. Em seguida bate aquele paradoxo existencial - viver pra quê, se o que se vive agora será esquecido daqui a pouco? Você comenta com um amigo sobre isso e ele vem com a máxima, presente em 10 entre 10 manuais de auto-ajuda: "viva intensamente cada momento, como se fosse o último. Preste atenção ao presente, sem se agarrar ao passado ou se preocupar com o futuro. Assim você estará mais receptivo a reter o que acontece agora".
Pior ainda é constatar que a sua memória recente também é quase uma retardada - incapaz de lembrar do que você almoçou ou jantou ontem.
Livros às centenas, filmes aos milhares. Passo nas locadoras e não os reconheço, nem pela caixinha e nem pelo conteúdo. Para mim são eternos lançamentos. O lado bom é que, se pego um filme que já vi, não fico com a sensação de que joguei dinheiro fora. Olho para a estante de livros, leio os títulos nas lombadas, sei que um dia os devorei a todos. Atenta e silenciosamente, a cada um deles dediquei horas e mais horas, dias e mais dias. Pra chegar agora e não lembrar de nada - nem da história, nem do assunto, nem dos nomes dos personagens, nem de coisa nenhuma. Dizem os psicólogos e neurologistas que é o consciente que não lembra, e que o subconsciente guarda tudo em detalhes. E é aí, inclusive, que eles entram com suas ferramentas e terapias. Penso: é a idade. Errado: aos 14 já era assim. Chego a aventar a hipótese de distúrbio cognitivo. Herança genética? Talvez. Meu avô estacionava o carro e esquecia os vidros abertos, a chave no contato e - inacreditável - o motor ligado.
Mas por que é que eu vim parar aqui mesmo? Sei lá. Esse frio deixa a gente meio assim, de miolo duro.