Sunday, September 24, 2006

ENSEBADO

Troco numa boa mil megastores de livros novos com cybercafés por um sebo mal arrumado e labirintuoso. Daqueles encravados nos centrões das metrópoles, com as paredes caindo aos pedaços como os volumes que abrigam. Até meados dos 80, nos sebos a gente só encontrava livros e revistas. Hoje tem vinis, CDs, fitas de vídeo e até DVDs. Muitos têm brinquedos usados, jogos de tabuleiro, vitrolas. Outros dividem espaço com brechó. Mas sempre sebos, honestos sebos, sem nenhum vendedor chato querendo te empurrar os últimos lançamentos.

O que freqüento é muito grande, Pra dar uma espiada rápida em tudo vai pelo menos uma semana. Sério. Como a empreitada é longa, pelo comprido galpão há banquinhos espalhados pro pessoal se acomodar, além de umas duas ou três poltronas. Velhas, com o estofamento puído, mas um oásis pras suas costas depois de algumas horas naquela babel.

Embora o habitué do sebo seja, ou quase sempre aparente ser, muito tímido, nem todos têm o perfil do rato de biblioteca. Há o freqüentador funcional, rápido e rasteiro. Esse tipo é pragmático e não gosta de antiguidade, vai lá porque é mais barato, geralmente está atrás de um livro específico pra faculdade ou coisa assim. “Tem? Vou levar. Não tem? Tchau”. Pronto. Sebo nas canelas.

O silêncio impera nos sebos, e isso às vezes é constrangedor. Dá pra escutar a respiração da pessoa na prateleira ao lado. E a consulta aos volumes vai aproximando fisicamente um freguês do outro. Aí a situação fica insustentável, parecida com o “efeito elevador”. Um dos dois acaba cedendo, indo ciscar em outras paragens até o outro desocupar.

Uma vez comprei um livrinho impresso em 1912. O carimbo da livraria, de Campinas, mostrava um número de telefone inacreditável: 27. As ligações, na época, inclusive as locais, eram via telefonista. “Senhorita, por favor, me liga no 36”. Parece morador de prédio falando no interfone com o porteiro.

Imagino a peregrinação daquele volume com o passar dos anos. Pode ter sido dado de presente pra filha mais nova de algum barão do café, que passou pro filho dela, que o doou a uma escola pública, que o emprestou a um aluno, que ficou com ele até vendê-lo ao sebo, em meio a um lote de outros 163 volumes. Quis o destino que estivesse agora aqui, a poucos metros das minhas fuças. E daqui a 100 anos, onde estará?

Não raramente se encontra, como marcador de página, algo devastadoramente íntimo. Veja esse bilhetinho, que veio no meu “Sagarana” de sebo:
“Tiago querido,
Às vezes dizemos besteiras sem pensar. Magoar você é a última coisa que quero nesse mundo. A comida está na geladeira, é só esquentar. Depois conversamos melhor.
Sua esposa, que muito te quer,
Odila Maria”

Odila Maria. Quem será, ou seria? Qual o motivo daquela briga, o que aconteceu e quando? Como era sua vida, a cor dos seus olhos e cabelos, onde morava? A vida lhe deu filhos ou acabou se separando do Tiago pra virar freira? Pode ter morrido tragicamente num acidente de carro, dias depois.

Dedicatórias de Natal, de aniversário, formatura. Páginas com anotações do leitor a lápis, trechos sublinhados. Às vezes umas manchinhas. Goiabada, purê de batatas, misto quente, bobó de camarão? Se não dá pra imaginar o antigo dono do livro, que dizer da origem da mancha.

Na última visita levei 14 vinis. De “Vida Bandida”, do Lobão, até uma coletânea de Ismael Silva. Total de 53 reais. Faz por 50? Faço, claro. Se preferir tem redeshop. É, sebo hoje trabalha com débito automático e cartão de crédito. Mais: há grandes sebos de São Paulo e do Rio com portinha aberta na web. Tudo separado por assunto, descrevendo o estado do livro e ano da edição. E dá pra dar zoom na capa. Você escolhe, compra e entregam em casa.

Mas aí também não tem graça. O legal é banhar-se naquele mar de ácaros e escancarar os pulmões à deliciosa poeira. E foi entre um espirro e outro que pincei um VHS de “As Invasões Bárbaras”, Oscar de filme estrangeiro em 2004. No estojo alguém escreveu, em esferográfica verde: “ L’ Amitié. Notre chanson”. Pesquisei no You Tube. Apareceu uma espécie de clipe em preto e branco, de 1965 e produção rudimentar, onde Françoise Hardy canta “L’Amitié”, uma romântica canção que embala a cena final do filme de Denys Arcand. Acesse e emocione-se. Se for alérgico a ácaros, tudo bem. Pelo menos por enquanto eles não vêm pela internet.

Sunday, September 17, 2006

ANGU À MODA DE DALI

Ah, como foi fácil abrir os olhos, ficar de joelhos e estalar artelhos dentro da redoma. Quis um cafuné despido de razão para comer com pão no café da manhã. Mas não estava são, como nunca estarei. Apenas maldizia em compasso de espera.
A cara metade a léguas daqui. A cara metida em downloads de lá. Entra o descanso de tela, despluga o fio de raciocínio que coitadinho se insinua a vir a ser alguma coisa. Vou escrevendo sem mãos a medir nem pés a amparar, mesmo sabendo que nada restará que se aproveite, exceto o jasmim exalado de uma ou outra consoante. Branca, linda, sem serifas que machuquem. Cai flutuando no texto e deixa-se ficar. Que nada, quimera, que sina, pintassilgos de resina nessa piscina de esperanto. Regrido pros idos da pedra lascada, desvãos, lodos e escaninhos por toda a inadequada geografia. Acesso de riso à entrada da estrada lacrada com pasta de amendoim e raspas de misericórdia. Mas de repente tudo passa a destoar de Dostoievski. Cubro com a mortalha o corpo da vida. Pois é, nem deu tempo de avisar todo mundo, mas o fato é que a vida acabou de morrer com um terno sorriso nos lábios. Incensa e chora, lamenta e geme que ela já era. Espana, gira em falso. Espanha, falsos Mirós. Vejo carradas de mouses de esgoto a farejarem rotos e a soltarem arrotos sobre outros ratos. Enquanto isso, há milhares de lousas à espera dos gizes e mulheres lusas ainda quentes, moídas por engano na bacalhoada. Uma soneca no vinco do teu jeans, sob o embalo cômodo de Brothers in Arms. Sem mais delongas, estimo melhoras.

Sunday, September 10, 2006

BABA-OVO

Não conhecia a expressão até outro dia. Já tinha ouvido muitas de suas variantes elencadas pelo Aurélio: bajulador, adulador, adulão, babão, cafofa, chaleira, incensador, lambedor, lambeta, lambeteiro, louvaminheiro, puxa-saco, sabujo, xereta, banhista, cheira-cheira, chupa-caldo, corta-jaca, engrossador, enxuga-gelo, escova-botas, incensador, xeleléu, lambedor, lambe-botas, lambe-esporas e mais um outro sinônimo realmente impronunciável.

Mas baba-ovo pra mim é novo. Não o sujeito, mas o predicado. Aliás, alguém poderia me dizer por que baba-ovo se chama baba-ovo e por que puxa-saco se chama puxa-saco?

Questões semânticas à parte, é preciso reconhecer que o baba-ovo legítimo, aquele que honra a classe, geralmente não é o que se poderia chamar de um cara ambicioso. Sua pretensão é ter o seu lugarzinho ao sol e tudo bem. Não chega a ser arrivista e também não é necessariamente mau-caráter. É ardiloso de nascença e por força das circunstâncias, mas seria uma injustiça chamá-lo de canalha. Falta a ele coragem para a vilania.

Como tudo que é rasteiro e ordinário, os baba-ovos pululam à nossa volta, é raça que se dissemina em estonteante velocidade. Agora mesmo tem um baba-ovinho nascendo. Tão baba-ovo que, se dependesse dele, ao invés de chorar na hora do parto daria um tapinha nas costas do médico. Sabe como é, nunca se sabe quando é que se vai precisar das pessoas...

Uma vez baba-ovo, sempre baba-ovo. Começa com a maçã lustrosa na mesa do professor e termina com o discurso, aos prantos, na cerimônia comemorativa aos 75 anos do Diretor-Presidente. E nessas e outras pequenas coisinhas, lá vai ele se segurando no staf e amealhando pontinhos.

O baba-ovo não é o político. É o assessor dele. Seu negócio é mais superficialzinho, não engendra grandes estratagemas e não age em quadrilha. É improvável que um puxa-saco entre em conluio com quem quer que seja pra obter alguma coisa. O baba-ovo de verdade é egoísta, quer fazer ele mesmo e não gosta de dividir o mérito, se é que se pode chamar de mérito o produto de sua desfaçatez.

Ser o escudeiro é tudo o que basta ao abnegado puxa-saco. Ele se compraz tendo o imediato superior a reverenciar. A seara dele é o bastidor, a adulação estudada e cheia de intenções adjacentes. O barato do baba-ovo é a própria vassalagem, curvar a espinha é o seu orgasmo. Fica sabonetando e estendendo o tapete por instinto e vocação mesmo. Definitivamente ele gosta da coisa.

O mais engraçado no baba-ovo é a sua inaptidão em disfarçar a babaovice. Se acha um expert em dissimulação, tem certeza de que ninguém está percebendo seus expedientes. Não imagina o quanto sua pretensa sutileza é ostensiva, o quanto é alvo de chacota nas rodinhas de conversa e nas mesas de bar. Enfim, o torpezinho mal sabe a que ponto sua fama é estabelecida na praça. E vai ficando sem saber, já que falta peito aos colegas para alertar o indivíduo. Já pensou chegar pro enxuga-gelo e dizer – “Ô meu, manera na puxa-saquice que tá dando na vista”? Não dá. É algo parecido com aquela história de avisar o sujeito que ele tem mau-hálito. Todo mundo sabe que é uma boa ação, até um gesto de caridade, mas ninguém se aventura a ser tão sincero.

Nas reuniões, sua perfeita concordância com as opiniões do chefe é tão automática e previsível que não choca mais ninguém. Mas aí acontece um imprevisto: o baba-ovo é surpreendido por uma inesperada promoção e passa a ser sub-chefe de qualquer coisa. Consequentemente, terá por sua vez, se não um arsenal, pelo menos um neo baba-ovo mais do que disposto a lamber-lhe as polainas. A pergunta é: será que ele, alçado agora ao posto de “adulável”, vai perceber?

Sunday, September 03, 2006

O NÃO SER

Eu sei que foi mais ou menos desse jeito, querendo jogar uma água sanitária no mofo de mim mesmo, que saí pra rua sem rumo nenhum. Pensando em não pensar em nada, só ouvindo um ou outro estalinho de graveto no caminho e deduzindo: isso é um estalinho de graveto no caminho e pronto.

Eu sei que a intenção era boa e honestamente me empenhei, mas ao primeiro graveto estalado me chega sorrateiro o chato interrogativo e suas vãs divagações. E me fala do abismo entre a finitude do ser e a infinitude do tempo/espaço, diz que é da natureza humana colocar termo, ordem e dimensão a tudo. Argumenta sobre a urgência e a necessidade de haver cabimento, pois tudo há de “caber” na fôrma do que é lógico, compreensível e demonstrável.

Eu sei do desalento nesse ponto de vista agnóstico. Considerando-se que a vida seja mesmo uma só, só essa que a gente tá vivendo e olhe lá, ela é um ridículo intervalo entre a eternidade que passamos não sendo e a eternidade vindoura onde continuaremos a não ser. Ao invés de seres, na verdade somos “não seres”, a não ser por algumas décadas. E tem gente que não aproveita essa rara exceção que o caos nos abre. Pior: há os que se matam, voltando prematuramente ao nada. É muito desapego, é quase fazer troça com o acaso ou com o Todo Poderoso.

Eu sei o quanto é difícil imaginar o que quer que seja sem um começo. Você saber que o tempo vai prosseguir indefinidamente a partir de agora, ainda vá lá. Mas você aceitar o infinito de tempo que houve antes de agora, fica bem mais complicado. Algo sem fim é algo mais fácil de conceber que algo sem começo. Uma coisa é começar do zero, como todas as coisas aparentemente começam. Outra é não ter zero. Como é que pode?

Eu sei que querer achar a combinação desse cofre é megalomania. Nossa cachola mede alguns centímetros quadrados e não seria razoável que abrigasse, em tão reduzido espaço, a explicação do universo. Enquanto isso astrônomos se debatem, fazem votação e agendam simpósios internacionais para deliberarem, soberanamente, se Plutão continua planeta ou se é rebaixado a aspirante. Como se isso diminuísse o peso das interrogações que há milênios levamos às costas.

Eu sei que entrei na primeira igreja que me apareceu na frente. Um grupo de oração seguia desfiando seu rosário. Beatas de véu, homens de terno, como que prontos para uma festa do divino. Rezei uma Ave-Maria e um Pai-Nosso, rogando a todos os santos que me tirassem da aflição inútil, pelamordeDeus. Com o perdão dos céticos, que às vezes perdem a razão pelo excesso dela, eu quero é nuvenzinhas, tronos celestiais, trombetas de serafins, mantos diáfanos. E faço questão que a autenticidade do Santo Sudário seja confirmada pela ciência. Que divina delícia esse conforto das abóbadas repletas de anjos gordinhos com cabelos encaracolados, os ecos de uns poucos sapatos na catedral vazia, às duas da tarde de uma segunda-feira. Ou os ofícios dos domingos, os estandartes, cálices bentos e andores das procissões, os tapetes de serragem e palha de arroz tingidos de anilina para o Corpus Christi. O céu e o inferno, Adão e Eva, o bem e o mal. Quero o padre de aldeia, que vem dar comunhão em casa e acaba ficando para o frango com polenta.